segunda-feira, 14 de maio de 2012

travessia




Lembro de um ano novo, ainda criança, em que eu abri a porta que dava para a frente da casa. Olhando o portão de ferro e a chuva que caía, escutava o silêncio. Ninguém na rua, todos em casa dormiam. Eu ali, em pé, com a mão na maçaneta, a porta entreaberta, o portão de ferro, a chuva e a minha tristeza gigantesca.

Jesus! Como me sentia arremessada naquele espaço, no corpo que eu vestia. Um completo desajustamento, inadequação total, um extra-terrestre em terreno desconhecido. Uma completa falta de laços com a família que ali dentro dormia, com as pessoas ao meu redor.

O sentimento de culpa era enorme. Mas culpada de quê? Uma melancolia tremenda. Sentia que se pudesse estar a milhões de anos-luz daquele lugar, já teria ido há tempos. Queria fugir daquela vida, sair daquele corpo, voar.

Falar era um esforço absurdo, me relacionar era pesado demais. Naquela noite, como em todos os anos anteriores a ela, sentia saudade de um lugar que sequer sabia. Uma saudade perdida no tempo, um vislumbre de lugar ao qual talvez eu pertencesse.

Os anos foram passando. Fui driblando a vida como dava, como dá. É difícil me relacionar com o outro. Quero silêncio, calma. A relação com o outro continua me trazendo peso, desconforto. Pelo menos a minha cabeça fala menos do que falava no passado. O som de milhares de vozes se reduziu a dúzias, que procuro coordenar e consigo, hoje, colocá-las em fila com senha, para que falem de maneira ordenada.

Quando lido com vários estímulos externos, basicamente pessoais, me sinto exausta. Os profissionais são administráveis e relativamente simples. No trabalho consigo resolver os desafios com objetividade e extrema eficácia. Pessoas são problemas. Eu e elas, cobranças, presunção de que me conhecem, de que as conheço, muito mais problemas.

O desafio é lidar com isso da melhor maneira possível. Ouvidos bem grandes para me ouvir adequadamente, olhos bem grandes para ver na escuridão e um amor bem gigante para me aceitar e dar passos conscientes nesta casa que não era minha, mas se tornou. Acredito que a meditação e o profundo respeito por mim dêem conta da travessia, além de boa dose de resignação e resiliência. 

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

trem


Há tempos não apareço por aqui. Hoje estou muito cansada fisicamente. Saí de um período intenso de trabalho e parece que usei toda a minha energia para isso.

Estou me sentindo vazia, esgotada. Mas não estou triste ou naqueles períodos em que a depressão bate à porta. Estou apenas cansada.

O tempo, como sempre, tem voado. Os anos têm se amontoado rapidamente. É como se estivesse num trem veloz, sentada com os olhos colados na paisagem, que muda muito ligeira. Muda o dia, a noite, o frio, a cara das pessoas. Este trem não para, não existe estação alguma como destino final. Ele apenas segue.

Douglas, meu gato, está com 11 anos. Não vejo nele sinais evidentes de velhice. Ele mudou de outra forma. Mais meigo, mais calmo, ele se aninha na coberta em meu colo no banco do trem que não para. Apenas segue comigo. Não pergunta, não quer saber.

Fecha e abre seus olhos com ternura, dorme um pouco, e me acompanha. Não importa para onde. Seguimos viagem da melhor maneira possível.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

involuntária


um dia, outro dia, mais outro dia... e essa coisa chamada vida vai acontecendo.

sábado, 30 de outubro de 2010

um


Por Cristina Thomé

No livro de arte sobre a mesa há a imagem de um menino, que observa. Olhos voltados para o canto esquerdo, mantém-se isolado. O tempo paira alheio, o mundo suspenso ao redor.

A pintura renascentista do menino captura o único, o olhar absorto congelado por outro ser que o registra. Quem era o menino? Sua identidade o tempo roubou, sua alma misturada e voluntariosa perambula por aí.

Somos um, na embolada história de existir. A despeito de generalidades, o espírito não se comprime, não se amalgama.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

francisco


Por Cristina Thomé

Há um Francisco que me acompanha desde a adolescência. Distanciados um do outro, ele aparecia vez em quando em forma de carta, trazendo um pouco de si. Entre tantas coisas, lembro-me de como se sentiu pequeno ao presenciar um vilarejo ser inundado no sertão. A água que subia inundava a ele próprio com a solidão daquele lugar.

Presença sutil, Francisco continua a me acompanhar de longe. Pelo pouco que também sei, continuo acompanhando-o daqui. Não sei exatamente do que Francisco gosta, exceto seu time de coração. De minha parte, amo Elvis Presley, Willie Nelson, tempo de chuva, a chuva, sorvete de creme, andar descalça, simplicidade, ficar quieta, paz...

Francisco me diz que é triste o que escrevo. Diria a ele que é morno, com gosto de domingo à tarde, de brisa tépida, bebendo vinho sob as árvores no sítio de minha infância. O que talvez eu sentisse sendo adulta na minha criança. Um deixar-me ficar, sem pressa.

De Francisco, continuo guardando o olhar profundo e interessado. Sei que ele tem pessoas que ama, muito. Sou grata pela delicadeza de sua presença.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

onegin

Por Cristina Thomé

Novamente assisti "Onegin". É a quinta ou sexta vez que o vejo e me emociono profundamente. Talvez mais a cada nova vez porque se tornam familiares os movimentos contidos, a sutileza que brota daquilo que silencia.

Há a beleza exata e assustadoramente singela de Liv Tyler. A perdição nos olhos tristes de Ralph Fiennes. Pelo filme paira a melancolia da impossibilidade, do tempo fora de sincronia.

A poesia impregna o gelo, o branco da paisagem. Nada mais apropriado para simbolizar a distância fria que o tempo pode cavar. E tudo circunstancial. Não há culpados para a falta de conexão.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

nascer

por Cristina Thomé

O anjo recém-nascido dança na sala da manhã. Grande já, ele nasceu. Na janela, o mar dança com o anjo que dança na sala da manhã.

Ele nasceu para me ver. Agachada, quietinha, choro baixo. Meus olhos acompanham o anjo da manhã na sala de maresia.

perde-se

por Cristina Thomé

Você não quer ouvir. Meus pés cansados já me carregaram o suficiente para que eu repita com veemência como é fundo o que sinto. Não adianta, eu sei.

A poeira cobriu nossa história. O vento não a trará mais à tona. Ele gira e gira e gira vagarosamente atrás de lembranças. Há no final da estrada um sol poente. Nuvens alaranjadas na lente dos óculos escuros.

Nada há mais aqui que você reconheça, exceto o que você não quer ouvir.

lugar algum

por Cristina Thomé

O que mais falar? Pare. De perder tempo. Pare de se perder. Meta nessa cabeça estúpida que há algo bom para se manter nadando.

Esqueça a margem. Você não chegará a margem alguma. Abandone-se na água, vire lodo, vire peixe, cachoeira, caia sobre as pedras. Deixe-se levar, entregue-se, vire mar.

sábado, 17 de abril de 2010

[...]

por Cristina Thomé

Como rio caudaloso, calmo e constante, o tempo passa. Mal damos conta de que ele segue alheio, exceto à sua obstinada necessidade de continuar. Penso que existem dois tempos: há o de natureza cíclica, que recomeça a cada vida que surge. E, há o tempo onipotente e solitário, senhor de todos os outros que seguem a vida dos indivíduos.

Quando jovens, a força que nos habita gera movimentos essenciais para a renovação. Sua natureza é de ruptura. Então, o tempo continua agindo e nos faz diferentes. A complacência nos ocupa e uma nostalgia estranha passa a conviver conosco. À medida que o tempo abre suas asas densas, mais e mais o silêncio se instaura. Há mais em contemplar. O simbólico se expande, a profundidade se instala.

Forças propulsoras irrompem em novas vidas. Outras tantas se transformam e aceitam o fluxo. Não se trata de resignação. É outra coisa, mas ainda não sei o nome.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

escape

por Cristina Thomé

Quando sorrio ninguém diz que as coisas estão complicadas. Estava pensando nisso pela manhã. Faz frio e gosto de sentar no banco da praça perto de casa. Sinto-me confortável com o suéter de lã e o cigarro entre os dedos. Depois de uma longa tragada, cubro a paisagem com uma nuvem de fumaça vinda direto dos pulmões.

Me abandono no momento calmo, na trégua comigo mesmo. Venho me adaptando bem, desde a última internação. Tenho medo de me descontrolar novamente. Por cautela, tenho usado de minhas táticas: o sorriso, um verdadeiro calmante social – mesmo quando o fluxo de pensamentos é contínuo e estonteante, uma viagem ruim. E, ultimamente, falo pouco. Um dia sucede o outro. Quem sabe eu consiga não voltar para lá.

despertar

por Cristina Thomé

O som insistente e abafado. É o despertador do tempo que me tira do torpor. Passaram-se meses, acordo para o ordinário cotidiano. Toda vez retorno para ele, que me recebe com o mesmo silencioso sorriso cínico. Retomarei a busca de sentido.

A incógnita é: para quê? Tateio no escuro, a cegueira me orienta no labirinto. Dou voltas e o mesmo som me acompanha, o cheiro familiar remonta histórias. Sinto canseira, o corpo dói. Porém, não tenho escolha. Preciso caminhar, outra vez. Até que o sono generoso me alcance, outra vez.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

mãe morta


por Cristina Thomé

Meu pai matou minha mãe pela manhã. Era outono e foram trinta facadas frenéticas, desferidas com muita força. Na vitrola laranja, Willie Nelson sustentou sua voz rouca até a agulha chegar ao fim.

Tatuados em minha memória ficaram o sol dourado crescendo na vidraça, o cheiro de torrada e o corpo morto de minha mãe.

Acordei com os gritos e me desvencilhei das cobertas como pude. Ao chegar na cozinha, paralisei. Literalmente. Com a faca suspensa, meu pai olhou pra mim. Também ele, uma estátua. Seus dedos afrouxaram, a faca caiu sobre a poça de sangue.

Levantou-se. Já na varanda, sentou-se na escada, apalpou o bolso da camisa, tirou um cigarro. Acendeu. A outra mão, cujo cotovelo estava sobre a perna, apoiava sua cabeça. Ao terminar, jogou a bituca no chão e começou a caminhar. Suas costas se distanciaram de mim. Nunca mais o vi.

Ficamos eu e minha mãe. Permaneci paralisada. Enfim, despenquei no chão. Cada pedaço meu se dissolveu num choro convulsivo.

Acordei com o rosto comprimido no chão frio da cozinha. Abri os olhos e vi os pés descalços e ensanguentados de minha mãe. Meu corpo doía. Abri o armário e distribuí feijão sobre a mesa. Precisava separar a sujeira do feijão.

Meus pés estavam com sangue. Eu podia ver a boneca de pano sem o olho direito jogada no chão da sala. Eu tinha seis anos e a certeza de não ter mais pai. Ele fora embora. Éramos eu e minha mãe.

Demoraram dois dias para nos encontrar. As marcas vermelhas de meus pés pequenos ficaram pela casa. Escolhi todo o feijão que tínhamos, assim como o arroz. A meu modo, organizei as gavetas e também a camisola branca empapada de sangue coagulado de minha mãe.

Coloquei margaridas de plástico nos cabelos de minha mãe morta. O que fazer com uma mãe morta? Eu não sabia. Dois dias depois me levaram dali.

domingo, 20 de setembro de 2009

sangria


Até o dicionário traz o adjetivo "incomodada" como sinônimo de "menstruada". Com o tempo, a gente se acostuma. Bem, a gente se acostuma com tudo mesmo: guerra, barulho, vizinho chato, dor nas costas, cabelo que não ajeita.

Menstruei pela primeira vez aos 13 anos. Lá se vão 28 anos de sangria mensal regular. Exceto períodos de ausência provocados pelo uso ininterrupto de anticoncepcional. 

A primeira vez – assim como muitas outras que viriam pela frente – foi um horror! Me senti péssima, exposta e com dores. Precisei colocar aquela coisa estranha chamada absorvente higiênico. Caminhava com a graciosidade de uma pata. Por aqueles tempos não existiam tantas opções quanto hoje. Não posso reclamar porque pouco antes a única disponibilidade no mercado eram os eficientes "paninhos higiênicos".

Bem, a minha enorme "almofada" íntima (sem abas! olha que precariedade...) se juntou ao meu primeiro sutiã – azul! Parecia a própria Joana D'Arc na armadura, seguindo para minha guerra santa particular! No caso, a aula de educação física. Se minha situação estava ruim, certamente poderia piorar.

Imagine a minha agilidade olímpica com tantas coisas para administrar: um sutiã recém adquirido e uma "almofada" recebendo golfadas intermitentes de sangue em pleno exercício de vôlei. O short do uniforme era vermelho (aqui, eu saía ganhando)... mas a saia era estupidamente branca, alvejada com anil.

Menstruar pela primeira vez, naquela época, deveria merecer um decreto sigiloso de feriado ou um período sabático de adaptação. Mas, não! Éramos lançadas à dura realidade, quase que desprovidas de armas.

Tantos anos se passaram e o embate serenou, mas o inimigo não dá trégua mesmo numa guerra diplomática. Como fêmea, sou detentora de um aparelho reprodutor e um par de seios que, pela lógica fria da natureza, serve para alimentar um filhote. Não tenho filhotes! Mas a natureza não permite opcionais. Normalmente o pacote vem completo e sem direito à troca ou devolução. E o funcionamento dessa máquina prevê que quando não sou fecundada, é papel de meu organismo expelir todo o preparo mensal que seria destinado a alimentar o princípio da vida. Aí, o script da menstruação. 

No ano passado, numa ultrassonografia intravaginal de rotina, o profissional responsável por operar a "pistola" leitora de útero e afins, consegue ver poesia onde eu apenas via sombras e escuros no monitor de TV: "olha! nossa! você está ovulando... que lindo! esse mês é vez de seu ovário esquerdo liberar o óvulo... ele está quase se despregando... olha!" Ele tentava me mostrar o óvulo maduro quase se despregando do folículo. Vai! Dei um desconto porque ele realmente estava empolgado... A posição era muito incômoda – deitada numa espécie de maca, com as pernas abertas, tendo a pistola encapada numa camisinha dentro da minha vagina – e pra me livrar daquilo mais rapidamente, me empenhei em ver o que ele me mostrava.  Fiz um exercício de desprendimento e me imaginei em férias no Caribe! Na verdade, se pudesse teria enfiado todos os meus dedos no pescoço do operador da "pistola" e estrangulado-o vagarosamente e com toda a minha força. Mas, sublimei, respirei fundo e entrei no sarau.

Consegui finalmente ver meu óvulo no monitor. A bem da verdade, uma manchinha na tela. Mas era redondinha, então me contentei em imaginar que aquele borrão fosse o milagre da natureza se manifestando... Passei meses contando: "este mês, o óvulo vem do ovário direito; ah! agora é o ovário esquerdo..." Parece até que sentia uma pontada especial daquele lado. Resultado: me atrapalhei, perdi a conta dos lados e hoje já não sei de qual lado sai o quê...

Esse poeta da ultrassonografia intravaginal provocou em mim um raciocínio estranho: todo mês elimino um filho em potencial. É claro que o ser não existe porque falta a sua "cara metade", o espermatozóide. Mas, se nós, fêmeas, já nascemos com um número finito de óvulos, significa que "queimo cartucho" todo mês. Pesquisando agora sobre essa história de já termos uma quantidade predeterminada de óvulos, li que as meninas nascem com cerca de 100.000 óvulos imaturos. Todo mês, um deles amadurece e, caso não seja fecundado, é eliminado. Se essa informação estiver correta, tenho óvulo imaturo pra caramba dentro de mim... Em 28 anos, eliminei apenas 336. Pra fechar a conta, restam ainda 99.664 óvulos em meus ovários. Se esses cálculos estiverem certos – considerando que perco 1 por mês – precisaria viver mais 8.305 anos pra dar conta de gastar todos. A natureza realmente não dá folga!

Deixando o exercício filosófico de lado, é bom que nós, mulheres, tenhamos uma caderneta básica com o calendário das últimas menstruações. Isso para saber quando a próxima sangria acontecerá.  A conta é besta de simples para quem tem um ciclo regular como o meu. Mas, há meses "chutei" as anotações. Consequentemente estava vivendo na imprevisibilidade. Esta semana sonhei com o Centro Espírita. Estava numa palestra e menstruei, desprovida de qualquer proteção. No sonho, minha roupa ficou toda manchada. Consegui me arrumar, arranjei um "modess" sei lá com quem. Depois disso, no sonho, ainda fui num bar lindo do Paulo Betti (o ator), que me ofereceu coquetéis deliciosos...

Pela manhã, ao acordar da epopéia onírica, percebo o desastre: estava realmente menstruada. Como perdi as contas do período, fiquei à inteira disposição do inimigo. Depois de 28 anos, a gente se acostuma e ajeita tudo como se fosse um assassino profissional, eliminando qualquer sinal de que algum sangue tenha se perdido por aquelas paragens (aliás, o termo técnico não seria exatamente sangue, mas a liquefação do meu endométrio – o que, pra mim, em termos práticos dá no mesmo: viscosidade de sangue, cor de sangue... tipo bem parecido com sangue). Me lembrei do filme "Pulp Fiction", em que o ator Harvey Keitel faz o papel do "faxineiro", ele é o profissional que limpa todos os vestígios da cena do crime – queima roupas, aplica produtos de limpeza para eliminar o sangue, descarta o corpo... – e, depois do serviço feito, ninguém diz que ali houve uma morte.

Bem, com minhas anotações atualizadas, me coloco na trincheira e aguardo a visita do inimigo vermelho para o mês que vem.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

pouco mais à frente


– Dona Ana, o tempo não vai mudar.
– Mudará sim, Tião. Sou um barômetro desde criança.
– Quem sou eu para contrariá-la, Dona Ana. A senhora sempre acerta...

***

Cortei meu cabelo há alguns dias. Está novamente curto, igual a tantos outros momentos de renovação. Sinto-me bem.

Cabelo curto, cara limpa, alma leve. Levo a mim pela mão outra vez. Vagarosamente absorvo mais uma experiência. Abandono pela estrada a mágoa e a raiva.

Fico satisfeita em não colocar coisas embaixo do tapete. Demora um pouco mais encarar de frente. Só que aí, quando o que precisa ser digerido é digerido, tudo fica melhor.

Gostaria de viver muito. Queria mesmo ficar velhinha. Tenho tanta admiração pelas pessoas que acumulam e amadurecem suas histórias. Porém se a vida levar logo, irei bem. Sinto hoje coisas que jamais pensei sentir. Isso já é muito mais do que supunha alcançar.

Ouço sino dos ventos na vizinhança. Há prenúncio de chuva no céu escuro. Se ela vier, dormirei com minha velha conhecida, minha ama de leite.

***

– A chuva vem, Tião. Confie em mim.
– Eu confio, Dona Ana.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

gelo


por Cristina Thomé

A camada espessa de gelo isola do mundo. Tudo se confunde.
Acima, o riso mudo nas faces congeladas. O isolamento é cruel. O riso congelado é cruel.

"São os riscos que se corre", diz a voz abafada em meus ouvidos submersos. Há riscos em tudo, meu bem. De que riscos você fala? Eu falo de doença. Existem pessoas doentes pisando sobre nós.

Permaneço abaixo do gelo. Com as mãos sangrando bato violentamente, quero me libertar. Cansada, me entrego. O afogamento. A água invade meus pulmões, o corpo inteiro. O que está inerte cede. Meu corpo cai, profundo. Vou para o nada, para a conhecida suspensão. Também eu preciso me curar.

domingo, 16 de agosto de 2009

não existe


Felicidade não existe. É uma ilusão que o tempo leva. Talvez exista paz. Essa eu continuo procurando. Não quero perder a fé na paz. Simplesmente porque não existiria mais nada a procurar.

Paz é a possibilidade de rir um pouco dessa coisa estranha que é viver, aceitar que a vida flui nos detalhes. Não existe nada de fora que vá causar impacto positivo se as coisas não estiverem minimamente ajeitadas dentro da gente.

Interessar-se pela vida, um dia após o outro, não é tarefa simples. Definitivamente não é. Em especial para as pessoas que olham além da superfície.

O que se vê é mais profundo. Existem momentos em que as coisas perdem o sentido. Mas a paz resgata o simples que é estar vivo. Ainda bem que os anos amaciam a carne e o espírito, no embate com a realidade.

O que fica é uma nostalgia, uma espécie de alegria triste. Rir é algo que me faz muitíssimo bem, faz bem pra minha alma. Porque nela o que vai mesmo é a sensação de que algo se perdeu. Não sei o quê, nem sei onde. Final das contas, feliz pode ser quem vive em paz, não importa se alegre ou triste.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

cantiga d'água


por Cristina Thomé

Manso, o barco corta a água. Nele vou eu. Cerrados os olhos, corpo no sacolejo do rio. Todo sonho, vento leva. Todo desejo, água apaga.

O rebojo risca de riso minha cara. Rasante de arara tinge o coração. Vou pra festa na vila. Pra quê mais festa do que a que tenho aqui? Morno de tarde boa de barco no rio que leva meu pensamento.

monólogo


por Cristina Thomé


Límpida, a voz cruza o corredor, desce escadas, encontra a rua. O requinte das lembranças o habita novamente. O frio corrói seus ossos, não tem como remediar. A voz, ao menos, aquece. A força da sonoridade ressuscita imagens.

Não se incomoda. Tanto faz os restos de roupa, a parede fria que lhe sustenta as costas. O que importa é enebriar-se na voz, lembrar-se tão nitidamente daquele rosto, a lembrança concreta que poderia tocar.

Suas mãos atingem o vazio ao quase encostarem no passado. Nem sabe a qual vida pertence o rosto. Sente a dor funda. Todo o frio, toda a fome jamais machucarão como a ausência, a falta que o rosto lhe faz.

O canto lírico reacende o sentido. Parece que algum valor lhe resgata. Apenas sentimento, monólogo silencioso que a alma aceita tão bem.

sopro


por Cristina Thomé

O touro respira o bafo quente em meu pescoço. Sinto a fúria no tremor da carne, pontiagudo do chifre varando a pele. É festa de rua. Ritual de sangue.

O animal me toma pra si. Oferenda desde a concepção, nasci de seu sopro. A ele, retorno.

passagem


por Cristina Thomé

Figura transformada em contorno. A imagem some como areia em mão aberta sugada pelo vento. Como fiapo de sonho na manhã. Rosto insano da louca nua que dança em meus olhos. A que falseia. A inconsciência no escuro.

Deitada em cama de palha sobre a fogueira, no meio do nada, queima em rito remoto de morte. Cinza que a terra esconde. A terra, o tempo, a vontade comeram a sua passagem.

Sobrar o quê? Nada pra sobrar. Na medida, sua passagem.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

distante


por Cristina Thomé

Era puro olhar a menina de pensamento longe. Encostada na porta de madeira via uma imensidão de terra à sua frente. Tudo parecia absurdamente grande. Seus olhos se perdiam.

Se perdia também no que imaginava vir a ser. O que talvez um dia fosse. A timidez era gigantesca. Nem imaginava como chegaria no lugar que precisava chegar. Nem sabia direito onde precisava chegar. Sabia que era longe de tudo o que estava a seu redor agora.

Seus olhos eram doces. De uma doçura que chegava a agredir, porque o mundo lá fora a gente sabe que não seria muito bom com ela. Ela não sabia. Se deixava levar pela vontade de ganhar estrada e pelo medo de botar o pé descalço naquela terra tão conhecida sua. Pra nunca mais, se começasse a andar. No fundo, aquele doce todo talvez fosse capaz de driblar o que de mal ia cruzar o seu caminho.

Por mais que o rude grudasse na barra de sua saia e se arrastasse com ela, sinto mesmo que ela daria conta de se livrar desse peso. Ela tinha tanta coisa boa naquela alma. Não é possível que fosse diferente. Ao olhar para aqueles olhos límpidos a gente se perdia.

É certo que ela daria conta de chegar onde a intuição mandava ir. Ah! Daria conta sim!

sexta-feira, 31 de julho de 2009

sonho [2]

[registro do inconsciente – noite de 30 de julho de 2009]

Estou grávida. Sinto a barriga crescer e olho para ela. Ali, está acoplada uma caixa grande redonda – como aquelas de chapéu. Ela é bege, feita de papel arroz. Há uma luz dentro dela. Levanto a tampa e vejo meu bebê em formação.

Em instantes, a caixa desaparece. O meu filho – um menino negro – está em gestação do lado externo do meu corpo, ligado a mim por um fio que entra pela barriga. Vou a vários lugares com ele durante o sonho. O feto já é um bebê quase pronto. O menino tem fome e eu o amamento.

Protejo muito a criança. Tenho medo de que algo a machuque. Ainda não está pronta. Envolvo o bebê num tecido confortável, deixo-o constantemente em contato com minha pele, embalo-o carinhosamente o tempo todo. Sei que logo irá nascer. O fio se romperá. Poderei, então, descansar.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

outra vez


A vida junta coisas, folhas, frios, medos, pessoas. Ao mesmo tempo, ela também perde ou esconde tudo isso em algum canto da memória. Há momentos em que ficamos inundados por tanto que nos aconteceu. Em outros, com enormes lacunas, como se nunca tivéssemos passado por histórias que vivemos. Acontecimento sobre acontecimento, percepção sobre a outra são os responsáveis por nos reconhecermos.

Fico me perguntando qual será a nossa verdadeira natureza. Ao trafegar pela vida nos sobrecarregamos de informações que não nos dizem respeito. Somos julgados, apreciados e esse peso de opiniões alheias vai se sedimentando sobre nossos ombros. E o que não é nosso, o que absolutamente não nos diz respeito passa a fazer parte da nossa autopercepção.
Existe uma natureza interna que vai ficando abaixo do lixo.

Semana passada consultei o tarô do Osho e perguntei sobre inquietação e descontentamento, sensações presentes naquele momento. Parece que a memória havia trazido muitas experiências simultaneamente, o que provocou confusão e acabou me distanciando de mim mesma.

O tarô trouxe a carta "Integração".

Integração
O conflito está no homem. A menos que seja resolvido ali, não poderá ser resolvido em nenhum outro lugar. O desafio político está dentro de você; ele acontece entre as duas partes da mente.

Há uma ponte muito pequena. (...) Se essa ponte for fortalecida o bastante para que as duas mentes deixem de ser duas e se tornem uma só, então acontecerá a integração, a cristalização (...) O encontro do masculino e do feminino dentro de nós, o encontro do yin e do yan, o encontro do esquerdo com o direito.

Comentário: a imagem da integração é a união mística, a fusão dos opostos. Este é o momento de comunicação entre dualidades da vida, anteriormente vivenciadas. Em vez da noite opondo-se ao dia, a escuridão suprimindo a luz, as polaridades estarão trabalhando juntas para criar um todo unificado, transformando-se ininterruptamente uma na outra, cada qual contendo a semente do seu oposto no seu âmago mais profundo. A águia e o cisne são ambos seres alados e majestosos. A águia é a encarnação do poder e da solitude. O cisne é a corporificação do espaço e da pureza, flutuando e mergulhando com suavidade no elemento das emoções, totalmente satisfeito e realizado em sua perfeição e beleza. Nós somos a união da águia com o cisne: macho e fêmea, fogo e água, vida e morte. A carta da integração é o símbolo da autocriação, da vida nova e da união mística, conhecida também como alquimia. (www.osho.com)


***

Muito bacana nessa carta é o conceito da autocriação. Nada está pronto dentro de nós.
É a constante possibilidade de rever o que vai na alma, no corpo. Possibilidade de mudar de rumo, arrancar de dentro o que não serve, recriar.

terça-feira, 28 de julho de 2009

fundo

por Cristina Thomé [17/05/2000]

Caso disponha de alguns instantes, olhe fixamente para os meus olhos. Será invadido por um silêncio imaculado, uma profundez oceânica.

Nas pupilas amendoadas terá um caminho reto para tudo aquilo que imagino secreta e solitariamente. Existirão restos de navios. A palavra não pronunciada estará a seu alcance.

Mantenha seu olhar e haverá uma chave para o meu segredo, cujo conteúdo nem eu tenho explorado em toda sua profundidade. A ânsia violenta das ondas que se mostram na tormenta ao náufrago sem saída.

Continue olhando e terá o seu próprio medo recuperado, a dúvida sobre a existência em toda a sua possível exuberância. Um mundo fértil não compartilhado.

"Há um silêncio onde nenhum som se faz ouvir.
Há um silêncio onde ser algum pode existir.
Na fria sepultura das profundezas do mar."
[Thomas Houd]

Agora sim, desvie seu olhar. A tontura virá, a pressão das águas foi embora. Não encare mais ninguém, por enquanto. Descanse. Nunca se sabe o que lhe trarão os próximos olhos.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

flores

Por Cristina Thomé

Deito-me sobre o campo de flores. Consigo ver, além do céu, minha própria alma suspensa. Tento me reconhecer, não consigo.

Existem buracos nessa alma estranha. Sei que preciso de delicadezas para tratar com ela. Apenas assim ela poderá me habitar decentemente.

Ouço vozes me chamando, são fiapos de sons. As flores me retém no chão. Sussurram que, às vezes, nos perdemos. Acontece.

sábado, 25 de julho de 2009

patchwork

Sábado de frio e chuva, tempo nublado. Caminhando pelas ruas logo pela manhã, meu senso de observação está mais aguçado que de costume. As cores estão vivas depois da chuva. O verde é intensamente mais verde, o marrom e assim por diante. Parece que às árvores foi atribuída uma sobrevida, algo que não estava ali antes da água que veio do céu.

Cedo vi na tv um barco que cortava o rio Negro. O nascer do sol tingindo as águas amazônicas... A música era clássica. Na sonoridade se destacava um solo de violino. Me perdi tão profundamente naquilo e, ao caminhar agora a pouco, essa sensação me envolveu novamente.

Nessa altura já estou atravessando a praça. Bem no centro dela, existe uma bela estátua. Levanto os olhos e a imagem de Nossa Senhora me ocupa por um tempo. Acima dela um céu cortado por galhos. Maria. Me vem à mente a imagem de um sorriso branco e olhos doces. Espanto a visão que a saudade insiste em trazer de volta.

Dia desses, a memória me trouxe o apocalipse. Agora, caminhando, me lembrei de novo. Por isso, resolvi passar num sebo e comprar a bíblia. Embora o Apocalipse faça parte do novo testamento, na bíblia hoje me interessa o antigo. Me atrai a face cruel de Deus, muito clara ali. O ser apoteótico que mata sem piedade.

Nessa minha caminhada, venho costurando lembranças. Ao recolher tanto cheiro, sons, imagens, me dou conta que talvez eu tenha sido presenteada com essa percepção aguçada. Sinto que muito provavelmente isso me ajude a recolher matéria-prima para construir alguma coisa.

Com o meu recém-adquirido antigo testamento nas mãos, termino a caminhada. A vida é assim. Há momentos em que tudo faz sentido. Instantes depois, sentido algum.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

chuva

É noite. Quase pegando no sono, um clarão na fresta da janela. Levanto meio a contragosto. Pressinto formação de chuva. Não dá outra: o tempo começa a mudar.

Escancaro a janela. Um vidro separa fora e dentro. Volto pra cama, busco aconchego no cobertor e contemplo a gestação do espetáculo pela natureza. É magnífico. Raios cortam o céu. A tempestade escondida na massa escura das nuvens. O monstro grita na noite.

O princípio de chuva brava me traz à lembrança os cavaleiros do apocalipse. Belíssima essa imagem. Imagino os cavalos rompendo a escuridão, relinchando, levantando-se sobre as patas traseiras. Adormeço com o som da tempestade... Sonho com leões, muitos. Todos à minha volta.

Não sinto medo exatamente, mas o instinto de preservação me paralisa. Se tentar sair, serei morta. Em silêncio, aprecio a beleza deles. Estou num deserto e os leões continuam andando em círculos em torno de mim. Dois deles brigam entre si, disputando a carne de outro animal.

Acordo na madrugada. Cai uma chuva mansa lá fora, o que me enche de calma. Sempre tive uma ligação muito forte com a chuva, com os extremos da chuva.

terça-feira, 21 de julho de 2009

water lily

Por Cristina Thomé

A mulher nua abandona seu corpo na água. Suspensão. A pele branca delimita a noite. Claro-escuro.

Flutua serena. Os cabelos perdidos no balanço do lago. Olhos fechados absorvem o silêncio. O cheiro de terra molhada. Ausência de pensamentos. Ela finalmente descansa, sua mente, o corpo. Os músculos cedem, calmaria.

Algo bate em seu rosto. Ao abrir os olhos, a linda flor de lótus ocupa todo o campo de visão. Branca, a flor desenha um sorriso na pele alva.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

paz

"Saber desistir. Abandonar ou não abandonar – esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando" [Clarice Lispector, em "Um Sopro de Vida"]

Entrar em sintonia conosco é precioso. Perceber o que se passa. Ter consciência. Existe circunstância em que independente da intensidade do sentimento é preciso deixá-lo pra trás. Algo parecido com a água de um rio que passa pelo corpo, que tira a sensação pesada que sequer tínhamos noção de carregar.

Ao ler esse trecho de Clarice imediatamente me veio à lembrança a carta do Osho que tirei na semana passada, quando pedi orientação sobre o presente. A carta foi "Transformação" e dizia que não havia o que ser feito. Nada deveria ser feito.

A resposta à minha pergunta era simplesmente desistir. A carta me falava que de imediato precisava me entregar à passividade profunda, aceitar qualquer dor, tristeza ou dificuldade e aceitar o fato consumado.

Clarice me fala coisa semelhante. E, continua: "Eu não quero apostar corrida comigo mesma". Nem eu. Incrível como a percepção foi clara. De certa maneira, o que vivo é a disputa comigo, venho resistindo. Ainda é tempo para serenar, me entregar. A desistência é redentora porque significa o meu próprio resgate.

dentro

Por Cristina Thomé

O inconsciente é carro suicida em alta velocidade, um matador profissional. Em lampejos, ele vem à tona. Sob a aparente tranquilidade existe mais, muitíssimo mais. Não me assusto. Ele cospe signos vertiginosamente.

O rato morto no corredor não me incomoda. O cheiro fétido do rato morto não me incomoda. Há um demônio sob as escamas. Existe um demolidor pronto a romper a pele branca. Queria libertá-lo, mas não posso. A sua prisão está aí dentro e terá que encontrar sozinho o caminho. Despertar.

De tolerâncias todos estamos fartos. Existe uma outra natureza sob o véu, abaixo da superfície.

seguir

Um dia mais um dia outro dia. A vida segue seu curso. Como rio, vai forçando a terra na tentativa de encontrar caminho.

sábado, 18 de julho de 2009

medusa

Por Cristina Thomé

Do emaranhado de gentilezas, palavras cuidadas, ódio, blasfêmias, se levanta a Medusa. Fustiga as palavras e as lança longe. Não quer discurso a criatura impaciente. 

Os olhos mortos da Medusa embalam a ira. Da beleza fora alijada. Afasta da fronte o confuso movimento de serpentes e fareja a adequada posição. Dirige seu olhar. As cobras eriçadas acompanham sua gargalhada de sarcasmo: mais um ser de pedra decora a sala.

Ela se afasta, lenta e entediada. Junto com as serpentes, o pensamento de que os deuses ao lhe impingirem a desgraça, lhe concederam um presente: a mortalidade. Não suportaria se arrastar para sempre.

elucubrações

Vi uma foto belíssima de duas pessoas transando. Fiquei divagando em como isso é maravilhoso. É uma delícia estar junto de alguém quando há afinidade, quando existe desejo. É saboroso se entregar, deixar o corpo seguir seu próprio ritmo. O beijo, a lascívia, enroscar o corpo no corpo da outra pessoa.

Tudo flui. Acontece. A maciez, o calor. A sintonia. Ser embalado pela perfeita conexão, o movimento. Até que o gozo venha, a satisfação. Deixar que o orgasmo espalhe sua vibração pelo corpo inteiro. Sentir depois a presença daquele corpo enrodilhado ao seu, a respiração quente.

Transar, fazer amor ou uma infinidade de sinônimos. Não interessa o nome, a sensação boa é a mesma.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

vento bom

Da janela, eu via a rua. Encantava-me ver os carros, cachorros, as nuvens que corriam ligeiras o céu. Como era bom sentir o dia!

Da cabeça ia tirando coisas, ia me limpando, esvaziando ideias, eliminando dores. Perder às vezes é bom!
 

quinta-feira, 16 de julho de 2009

vergonha

Ouvi de uma pessoa algo interessante. Mais ou menos assim: “também estou lhe contando isso porque as pessoas podem rir de você, inclusive na sua frente”. Isso me surpreendeu. Rir de mim… O que fiz de tão vergonhoso ou esdrúxulo que alguém possa rir de mim? Isso ficou ecoando internamente, ecoando… Cheguei a uma conclusão simples: as pessoas podem rir porque confiei.

O comentário foi de uma trivialidade incomum. Uma normalidade assustadora. A pessoa do comentário deve ter feito uma leitura equivocada. O que para ela é fraqueza, eu considero força. Não fiz nada além de confiar – coisa que costumo fazer com pessoas que gosto e para as quais abri espaço na minha vida. Mas, certamente alguém fez alguma coisa. E talvez venha fazendo já há bastante tempo. O que me expôs, me colocando numa posição de suposta fragilidade.

Num momento inicial isso me incomodou. Mas, ainda bem que a minha capacidade de discernimento anda grande. Daí, fui relaxando e olhando pra mim. O que vejo é bacana, é limpo, é calmo. A trajetória é suada na busca por mim mesma.

O ego arrasta a gente pro fundo, se não se presta atenção. Ele se alimenta da aprovação externa. Ao caminhar pela vida, olhando para nós próprios com amor, saberemos que muitas vezes queremos coisas que a nossa matilha não quer. E, o que nos parece ridículo, vergonhoso, pode ser uma grande oportunidade de respirar.

Continuo considerando confiança um bem precioso. E, continuarei confiando. O que mudam são as pessoas. Existem aquelas que se acostumaram a conviver acreditando que confiança é algo menor, é tolice, é fraqueza.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

amadurecer

Não sei se tive o desprendimento da escuta, mas ontem me abri para ouvir. E fiquei grata por ouvir de alguém coisas absolutamente importantes. Pude saber de coisas que de outra maneira não saberia porque convivemos em meios muito diferentes. E, não saberia por outras pessoas. Houve respeito e ouvi coisas que poderiam ser escondidas.

Bem, senti um enorme alívio porque agora posso escolher qual caminho seguir. Percebi que a outra pessoa não tem abertura para viver o que quer que seja no que se refere à afetividade, à troca. Não existe disponibilidade verdadeira.

Represento uma possibilidade de fuga. A outra pessoa está machucada, tentando entender a sua história. E, ao mesmo tempo que me quer, não me quer. A pessoa não busca a mim exatamente, mas tenta mudar de trajeto, ir em outra direção. E, ela sabe disso.

Ouvi também que sentir profundamente as coisas é não ter amadurecido. O nome usado para isso foi passionalidade. Seria mais fácil para a outra pessoa que eu fosse diferente. Mas, não sou. Não estou pedindo nenhuma garantia.

O que eu quero é qualidade no começo de alguma coisa, é leveza. Viver algo em que eu me sinta desejada. Sentir que alguém queira de verdade que eu esteja ali. E, principalmente, um lugar onde eu possa ser eu mesma, inteira, rindo do jeito que eu gosto, me entregando da maneira como é habitual pra mim.

Quero que alguém tenha espaço para me receber. Cumplicidade não é algo que acontece de um dia pra noite, mas é preciso que haja desejo pra isso. As coisas se constróem, nada está pronto. Tampouco um dia estará. Mas para que a construção comece precisa haver terreno fértil. Não quero disputar espaço com o passado (tão presente, aliás). Ou o espaço existe, ou não existe.


Não há nada de errado, no final das contas. Nada. É uma questão de sincronia. As escolhas servem para nos levar de um lugar para outro, de uma história para outra.

sábado, 11 de julho de 2009

a casa


por Cristina Thomé

Conheci uma casa que dá presentes. Oferece beija-flor pra ser salvo, brindando as pessoas com a consciência da generosidade.

A casa tem um gambá no forro, que aparece às vezes. Pelo passinho pesado sobre nossas cabeças, dá até pra sentir o seu calor, o gordinho do corpo. O bicho brinca à noite. A travessura é tirar o sono dos outros e, quem sabe, convidar para a lua, ver se o céu tem estrela.

Além de linda, a casa é confortável de não acabar mais. A madeira das paredes, as janelas, os vidros mostrando o dia lá fora, trazem paz ao coração. Essa casa inexplicavelmente faz com que nos sintamos amados, como se nos acolhesse e falasse de como somos importantes.

A casa parece que nos coloca no colo e mostra que também nós somos capazes de abrigar pessoas. Que existe a possibilidade de agregar quando queremos. Ao mesmo tempo, ela nos nivela. Atribui a mesma importância a todos que estão abaixo do seu teto. Porque pra ela o importante é somente a disposição das pessoas em se acolherem umas às outras.

Existe um segundo piso, acessível por uma escada espiralada. Dali se vislumbra o jardim. Lá em cima um espaço para o recolhimento, para a leitura, para pensar. Assim como ela mistura as pessoas, ela também separa. É uma tentativa de falar que o silêncio é igualmente necessário. De que é preciso que a gente se entenda, se encontre primeiro para ser inteiro em outros encontros.

Se uma casa pode ser nossa família, essa deve ser mãe. Do tipo de mãe boa, que passa a mão em nossa cabeça e a recosta no ombro quando precisamos tanto. Ela nos abraça em suas poltronas, em seus sofás, nas camas, nos cobre, nos aninha.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

a palavra inexistente

por Cristina Thomé

Um encontro havia sido marcado. Nele, latente a possibilidade de falar sobre dores internas, ouvir um pouco do que ia no coração da outra pessoa. Coisas difíceis, delicadas. O sentimento era grande. Disso ela sabia. Havia um dia inteiro até lá, que passou atarefado e acabou com chuva, numa reunião de trabalho com pessoas que se conheciam há muito tempo.

Sentia-se cansada. Uma canseira que não era propriamente física. Como se fosse mais funda, coisa de alma velha. Aqui nada de comparar com sabedoria. Pode ser alma velha e burra mesmo. Têm das duas coisas. A chuva lhe ajudou a chegar numa profunda calma ao encontro marcado.

Sinceramente esperava um pouco de diálogo sobre coisas que aconteceram antes e durante um comprido distanciamento. Saber da outra pessoa. O que teria feito nos últimos tempos, o que pensava, o que ia pela cabeça. Talvez nem falar quisesse tanto. Nada de conclusões, no final das contas. Porque essas coisas são sem lógica e não acontecem assim.

Logo de cara, o encontro que seria entre duas pessoas acabou em três. Nada contra a terceira pessoa, simpaticíssima aliás. Mas, estranhamente, aquilo que era importante parecia já não ser importante, ou pelo menos não tão importante assim. Um sentimento de vazio.

As duas pessoas do encontro previamente marcado eram bastante diferentes. Uma gostava de gente, o tempo todo. A outra gostava de gente, mas não em tempo integral. Cada uma delas com traços marcantes, porém em sentidos diversos. Não diria opostos. Paralelos, talvez.

Hábitos bem diferentes. Uma com acentuado gosto boêmio, a outra que via na noite uma bela oportunidade de sono. Nada aqui de considerar certos e errados, apenas diferenças. Isso vingaria? Haveria respeito para equilibrar dicotomias?

Não apostaria nessa noite. Não por acreditar ou por não acreditar, simplesmente por não saber. Algumas palavras foram ditas, algumas vontades lançadas. E assim foi, a noite e a chuva, duas pessoas dormindo juntas. Quem sabe no sono o encontro aconteceu?

A manhã veio. Café, pão, ovo quente, três pessoas falando do tempo ao redor da mesa. A chuva lá fora. As duas pessoas do encontro marcado se separam. Pode ter sido a reinvenção de um novo começo. Pode ser que nada houvesse a ser dito. Ela de fato não sabia.
 

qualquer coisa

por Cristina Thomé

Absorta pela música. Todos os sentidos entregues à voz envolvente que serpenteava pelo salão. Poucos casais na pista de dança e tudo à meia luz. Ela se perdia na fumaça do cigarro.

Era uma mulher cansada essa noite. O peso de tantas coisas se depositou em seu corpo, o choro preso na garganta. Há meses frequentava aquele lugar, ocupando a mesma mesa, apenas para ouvir aquela voz negra de mulher voluptuosa entoando um blues, sempre no mesmo tom.

Aquilo soava familiar à sua solidão. Havia errado tanto na vida, já havia perdido tanto...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

roupa


por Cristina Thomé [05/07/2009]

Tire essa roupa, não lhe combina a estampa. É bem verdade que nada do que há em seu guarda-roupa tem lhe servido ultimamente. Seu rosto mudou. Seus olhos, sua boca, sua altura, seu cheiro mudaram.

O que, em tão pouco tempo, pode ter lhe acontecido para que essa estranheza tenha se instaurado? Seu corpo não lhe serve mais, algo desajustou. Você está prenhe! É prenhez de si própria. Agora não tem jeito: vai ser outra, você mesma!

domingo, 5 de julho de 2009

maria


por Cristina Thomé [01/07/2009]

Entre tantas, conheci uma maria que se destaca do rosário de marias. Tinha um escapulário, o receio de perder pessoas, o amargo medo da solidão. Vinha lá, desde longe, com o sorriso branco estampado no rosto. Olhar zombeteiro, apertado pelo sorriso largo. Os olhos queriam timidamente brincar com a gente. Como se houvesse uma história engraçada prestes a contar.

Vez em quando, flagrava-se ensimesmada sem motivo aparente. Pensando, pensando, se fechava a maria. Era falta de estrada. Fluídica, era do tipo que não se prende, que não tem parada. Uma sede atávica por novidade. E, se descolava num sopro, pronta a descobrir outras vidas.

Entre tantas lembranças que se escondem, desse belo retrato de maria pregado na memória não quero me perder.

sábado, 4 de julho de 2009

noite


por Cristina Thomé [03/07/2009]

À espreita, o olho do bicho ruim. Era nítido o brilho no negrume. Estava lá se deslocando na sombra. Fedia aquilo. De dentro da casa podia se sentir o pesado do ar. Em algum canto a coisa nojenta media.

E, mataria quem passasse. Os da casa sabiam que essa hora não era mais a de sair. A noite exigia recolhimento. Há anos era assim. Começou repentino. Foram sumindo pessoas, sobrava sangue na palhada. Cavalo que, na teimosia, por ali fosse conduzido, estacava, refugava, não ia. Era caminho de volta, à disparada.

O tempo corria e o cheiro fétido se instalava. O estalado do mato, o brilho no escuro e a indelével presença do bicho ruim que dali não saía. Noite após noite, sem se importar com a lua.

Encomendaram novena. Ignorância desmedida. Chamar Deus pra bicho do demônio resultou em três beatos a menos na noite da procissão. Restou santo de gesso encostado ali, sem devoto pra carregar no lombo a fé que não existia.

Investidas várias pra matar o desconhecido. Semanas passaram, meses passaram. Tentativas foram minguando, rareando foi a vontade. Nada se via.

sonho [1]

[registro do inconsciente: sonho - noite de 03 para 04 de julho/ 2009]

Estou sentada no chão, com as costas na parede e o livro apoiado sobre as pernas dobradas. Ouço um barulho lá fora, continuo lendo. Na cena, apenas o livro e minhas mãos. Sinto um corte, percebo um mínimo de sangue no dedo. Continuo lendo e as mãos vão se tingindo de sangue, cada vez mais sangue nas mãos. Mancho as páginas do livro, a camiseta branca.

Continuo lendo. Alguém entra na casa. A cena se desloca para a sala ampla, com piso de mármore cinza chumbo granulado. Lateralmente uma escada em espiral e ao centro um enorme piano preto de cauda, com a tampa fechada.

A pessoa que entra é uma mulher transtornada, que discute aos gritos com um homem. Ele tenta segurá-la na sala, mas não consegue. A mulher sai para a rua ao ouvir vozes dizendo que alguém vai casar. Ela se mata lá fora. A imagem agora é de seu corpo estendido sobre o piano, coberto por um tecido fino e branco.

Lá fora, nos fundos, existe uma espécie de curral transformado em matadouro. Pessoas são mortas ali. Vísceras, sangue e muitos pedaços de veias picotadas formam uma espessa camada no chão. Saio da casa e fico parada, contemplando a mulher morta. Agora, o corpo está sobre um túmulo de concreto. Na cabeceira, como se fosse uma lápide, um espaço oco e coberto para a queima de velas. Haviam muitas delas ali, com suas chamas brilhando, a parafina derretendo.

Chega um outro corpo, minúsculo, que caberia na palma da minha mão. É uma criança numa caixinha. Nesse esquife de papelão, há pedrinhas no fundo, o corpo na posição central. À sua esquerda, uma imagem de Nossa Senhora com seu manto azul. Também plantada entre as pedrinhas, à direita, uma réplica miniaturizada de uma flor vermelha, de plástico. Ao centro, o bebê japonês morto, branco meio arroxeado. Seus braços e cabeça estão nus. Um pano branco cobre o restante do corpinho.

Seguro o pequeno pacote na mão. Um homem me orienta a levá-lo ao fundo. É ali o crematório, que consiste numa espécie de buraco lateral com cabos e mangueiras. Não há fogo, apenas um calor intenso. Fico parada em frente ao buraco, consternada, com a caixinha na mão. Um dó imenso de depositar a criança no buraco. O homem atrás de mim diz: "coloque para queimar, é melhor assim; ele vai apodrecer de qualquer forma".

Sem alternativa, resigno-me, sei que ele tem razão. Coloco no buraco o corpinho com seu esquife. Fico em pé, me perco pensando... O homem me diz que preciso levar o corpo e colocá-lo sobre o túmulo de concreto, onde está a mulher. Volto à realidade, pego o pacote. O menino está todo derretido, deformado. Uma das pernas tinha se alongado, como se fosse uma vela derretida pelo efeito do calor. A cabeça está dilatada. Seguro aquilo entre as mãos (ainda o pacote inteiro), aperto junto ao peito. Uma sensação horrível de perda, de tristeza.

O caminho de volta me obriga a passar pelo matadouro, pelo caminho estreito e afunilado de madeira, como um curral que conduz o gado à morte. Ele está imundo, repleto de restos humanos, vísceras, milhares de pedaços de veias e tripas. Não há sangue em parte alguma. Como se tivessem sido lavados por jatos e jatos e jatos de água haviam apenas pedaços amarelados no chão. Numa viscosidade consistente, esses restos formam uma camada que atinge a altura dos meus joelhos. Atravesso aquela barreira pegajosa vagarosamente, com asco descomunal.

Concluo a travessia e deposito o esquife com o corpo do menino sobre o concreto, bem próximo à cabeceira, junto às velas. A mulher morta não está mais lá.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

puta


por Cristina Thomé [02/07/2009]

Atrás do batom irregular, a puta fitava o reto do horizonte. Queria dizer algo, mas não dizia. A boca entreaberta naquele borrão apressado de aquarela. Vadia!

Suas pernas abertas eram duas pilastras sustentadas sobre saltos desafiadoramente altos. Coisa perigosa até. Um paralelepípedo, um passo mal dado e... pimba! Perna quebrada.

E quem paga licença de puta? Vai dar de pata quebrada mesmo! Sabe lá se o interesse não aumenta... Tem fetiche pra tudo. Bicha ruim, de olho ruim era aquela puta! Navalha no bolso, ligeira, não deixava nego folgar. Nem poderia.

diferenças

Li em variados momentos e fontes diferentes a força que reside na "não-comparação". Leonardo Boff fala num texto belíssimo sobre sermos templos únicos de Deus, unidades cósmicas. Cada um de nós. Há anos tenho buscado por este texto e não o reencontrei. Osho, obviamente, também discorre com sublime beleza sobre este tema.

Enfim, somos o que somos e, com a mesma força, o que nos propomos ser a partir do instante em que a consciência disso sobrevém. Não é justo que nos comparemos a ninguém. Não há justiça nisso para o outro, tampouco para nós. Pessoa alguma ganha com isso.

Nasci única. Tenho determinada forma de olhar, acompanhada de uma presença que só eu mesma tenho. Sou tímida em outras circunstâncias. Mas de uma timidez que só eu sei. Espirituosa. Cada um de nós pretende saber de seu próprio oco, da sua própria luz.

É de um reducionismo atroz o entorno, a sociedade e suas regras. Ela supõe catalogar as pessoas, atribuindo-lhes selos de viabilidade. Em que sentido esses pesos? Ganhador sob quê medida? Perdedor de quê?