segunda-feira, 28 de setembro de 2009

mãe morta


por Cristina Thomé

Meu pai matou minha mãe pela manhã. Era outono e foram trinta facadas frenéticas, desferidas com muita força. Na vitrola laranja, Willie Nelson sustentou sua voz rouca até a agulha chegar ao fim.

Tatuados em minha memória ficaram o sol dourado crescendo na vidraça, o cheiro de torrada e o corpo morto de minha mãe.

Acordei com os gritos e me desvencilhei das cobertas como pude. Ao chegar na cozinha, paralisei. Literalmente. Com a faca suspensa, meu pai olhou pra mim. Também ele, uma estátua. Seus dedos afrouxaram, a faca caiu sobre a poça de sangue.

Levantou-se. Já na varanda, sentou-se na escada, apalpou o bolso da camisa, tirou um cigarro. Acendeu. A outra mão, cujo cotovelo estava sobre a perna, apoiava sua cabeça. Ao terminar, jogou a bituca no chão e começou a caminhar. Suas costas se distanciaram de mim. Nunca mais o vi.

Ficamos eu e minha mãe. Permaneci paralisada. Enfim, despenquei no chão. Cada pedaço meu se dissolveu num choro convulsivo.

Acordei com o rosto comprimido no chão frio da cozinha. Abri os olhos e vi os pés descalços e ensanguentados de minha mãe. Meu corpo doía. Abri o armário e distribuí feijão sobre a mesa. Precisava separar a sujeira do feijão.

Meus pés estavam com sangue. Eu podia ver a boneca de pano sem o olho direito jogada no chão da sala. Eu tinha seis anos e a certeza de não ter mais pai. Ele fora embora. Éramos eu e minha mãe.

Demoraram dois dias para nos encontrar. As marcas vermelhas de meus pés pequenos ficaram pela casa. Escolhi todo o feijão que tínhamos, assim como o arroz. A meu modo, organizei as gavetas e também a camisola branca empapada de sangue coagulado de minha mãe.

Coloquei margaridas de plástico nos cabelos de minha mãe morta. O que fazer com uma mãe morta? Eu não sabia. Dois dias depois me levaram dali.

domingo, 20 de setembro de 2009

sangria


Até o dicionário traz o adjetivo "incomodada" como sinônimo de "menstruada". Com o tempo, a gente se acostuma. Bem, a gente se acostuma com tudo mesmo: guerra, barulho, vizinho chato, dor nas costas, cabelo que não ajeita.

Menstruei pela primeira vez aos 13 anos. Lá se vão 28 anos de sangria mensal regular. Exceto períodos de ausência provocados pelo uso ininterrupto de anticoncepcional. 

A primeira vez – assim como muitas outras que viriam pela frente – foi um horror! Me senti péssima, exposta e com dores. Precisei colocar aquela coisa estranha chamada absorvente higiênico. Caminhava com a graciosidade de uma pata. Por aqueles tempos não existiam tantas opções quanto hoje. Não posso reclamar porque pouco antes a única disponibilidade no mercado eram os eficientes "paninhos higiênicos".

Bem, a minha enorme "almofada" íntima (sem abas! olha que precariedade...) se juntou ao meu primeiro sutiã – azul! Parecia a própria Joana D'Arc na armadura, seguindo para minha guerra santa particular! No caso, a aula de educação física. Se minha situação estava ruim, certamente poderia piorar.

Imagine a minha agilidade olímpica com tantas coisas para administrar: um sutiã recém adquirido e uma "almofada" recebendo golfadas intermitentes de sangue em pleno exercício de vôlei. O short do uniforme era vermelho (aqui, eu saía ganhando)... mas a saia era estupidamente branca, alvejada com anil.

Menstruar pela primeira vez, naquela época, deveria merecer um decreto sigiloso de feriado ou um período sabático de adaptação. Mas, não! Éramos lançadas à dura realidade, quase que desprovidas de armas.

Tantos anos se passaram e o embate serenou, mas o inimigo não dá trégua mesmo numa guerra diplomática. Como fêmea, sou detentora de um aparelho reprodutor e um par de seios que, pela lógica fria da natureza, serve para alimentar um filhote. Não tenho filhotes! Mas a natureza não permite opcionais. Normalmente o pacote vem completo e sem direito à troca ou devolução. E o funcionamento dessa máquina prevê que quando não sou fecundada, é papel de meu organismo expelir todo o preparo mensal que seria destinado a alimentar o princípio da vida. Aí, o script da menstruação. 

No ano passado, numa ultrassonografia intravaginal de rotina, o profissional responsável por operar a "pistola" leitora de útero e afins, consegue ver poesia onde eu apenas via sombras e escuros no monitor de TV: "olha! nossa! você está ovulando... que lindo! esse mês é vez de seu ovário esquerdo liberar o óvulo... ele está quase se despregando... olha!" Ele tentava me mostrar o óvulo maduro quase se despregando do folículo. Vai! Dei um desconto porque ele realmente estava empolgado... A posição era muito incômoda – deitada numa espécie de maca, com as pernas abertas, tendo a pistola encapada numa camisinha dentro da minha vagina – e pra me livrar daquilo mais rapidamente, me empenhei em ver o que ele me mostrava.  Fiz um exercício de desprendimento e me imaginei em férias no Caribe! Na verdade, se pudesse teria enfiado todos os meus dedos no pescoço do operador da "pistola" e estrangulado-o vagarosamente e com toda a minha força. Mas, sublimei, respirei fundo e entrei no sarau.

Consegui finalmente ver meu óvulo no monitor. A bem da verdade, uma manchinha na tela. Mas era redondinha, então me contentei em imaginar que aquele borrão fosse o milagre da natureza se manifestando... Passei meses contando: "este mês, o óvulo vem do ovário direito; ah! agora é o ovário esquerdo..." Parece até que sentia uma pontada especial daquele lado. Resultado: me atrapalhei, perdi a conta dos lados e hoje já não sei de qual lado sai o quê...

Esse poeta da ultrassonografia intravaginal provocou em mim um raciocínio estranho: todo mês elimino um filho em potencial. É claro que o ser não existe porque falta a sua "cara metade", o espermatozóide. Mas, se nós, fêmeas, já nascemos com um número finito de óvulos, significa que "queimo cartucho" todo mês. Pesquisando agora sobre essa história de já termos uma quantidade predeterminada de óvulos, li que as meninas nascem com cerca de 100.000 óvulos imaturos. Todo mês, um deles amadurece e, caso não seja fecundado, é eliminado. Se essa informação estiver correta, tenho óvulo imaturo pra caramba dentro de mim... Em 28 anos, eliminei apenas 336. Pra fechar a conta, restam ainda 99.664 óvulos em meus ovários. Se esses cálculos estiverem certos – considerando que perco 1 por mês – precisaria viver mais 8.305 anos pra dar conta de gastar todos. A natureza realmente não dá folga!

Deixando o exercício filosófico de lado, é bom que nós, mulheres, tenhamos uma caderneta básica com o calendário das últimas menstruações. Isso para saber quando a próxima sangria acontecerá.  A conta é besta de simples para quem tem um ciclo regular como o meu. Mas, há meses "chutei" as anotações. Consequentemente estava vivendo na imprevisibilidade. Esta semana sonhei com o Centro Espírita. Estava numa palestra e menstruei, desprovida de qualquer proteção. No sonho, minha roupa ficou toda manchada. Consegui me arrumar, arranjei um "modess" sei lá com quem. Depois disso, no sonho, ainda fui num bar lindo do Paulo Betti (o ator), que me ofereceu coquetéis deliciosos...

Pela manhã, ao acordar da epopéia onírica, percebo o desastre: estava realmente menstruada. Como perdi as contas do período, fiquei à inteira disposição do inimigo. Depois de 28 anos, a gente se acostuma e ajeita tudo como se fosse um assassino profissional, eliminando qualquer sinal de que algum sangue tenha se perdido por aquelas paragens (aliás, o termo técnico não seria exatamente sangue, mas a liquefação do meu endométrio – o que, pra mim, em termos práticos dá no mesmo: viscosidade de sangue, cor de sangue... tipo bem parecido com sangue). Me lembrei do filme "Pulp Fiction", em que o ator Harvey Keitel faz o papel do "faxineiro", ele é o profissional que limpa todos os vestígios da cena do crime – queima roupas, aplica produtos de limpeza para eliminar o sangue, descarta o corpo... – e, depois do serviço feito, ninguém diz que ali houve uma morte.

Bem, com minhas anotações atualizadas, me coloco na trincheira e aguardo a visita do inimigo vermelho para o mês que vem.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

pouco mais à frente


– Dona Ana, o tempo não vai mudar.
– Mudará sim, Tião. Sou um barômetro desde criança.
– Quem sou eu para contrariá-la, Dona Ana. A senhora sempre acerta...

***

Cortei meu cabelo há alguns dias. Está novamente curto, igual a tantos outros momentos de renovação. Sinto-me bem.

Cabelo curto, cara limpa, alma leve. Levo a mim pela mão outra vez. Vagarosamente absorvo mais uma experiência. Abandono pela estrada a mágoa e a raiva.

Fico satisfeita em não colocar coisas embaixo do tapete. Demora um pouco mais encarar de frente. Só que aí, quando o que precisa ser digerido é digerido, tudo fica melhor.

Gostaria de viver muito. Queria mesmo ficar velhinha. Tenho tanta admiração pelas pessoas que acumulam e amadurecem suas histórias. Porém se a vida levar logo, irei bem. Sinto hoje coisas que jamais pensei sentir. Isso já é muito mais do que supunha alcançar.

Ouço sino dos ventos na vizinhança. Há prenúncio de chuva no céu escuro. Se ela vier, dormirei com minha velha conhecida, minha ama de leite.

***

– A chuva vem, Tião. Confie em mim.
– Eu confio, Dona Ana.