sábado, 27 de dezembro de 2008

nada


Caminhei e corri muito ontem e,  como é bom quando o vento e a chuva tomam conta do corpo e a música estoura no ouvido... Uma combinação perfeita. Interessante perceber as pessoas quando estou correndo: todas ocupam uma ilha particular. Todas conectadas, entregues à sua própria trilha sonora. E, ninguém está nem aí pra ninguém. Uma sensação maravilhosa!

Bem, continuo na mesma, às vezes um pouco aprisionada pelas circunstâncias. Porém, com algumas pistas. Hoje assisti "Na Natureza Selvagem". Um filme que me emocionou muito. E, não há como não pensar na trajetória, na vida, no meu próprio caminhar. Às vezes as coisas não fazem muito sentido. Talvez o segredo esteja aí: dar algum sentido a isso. E, quem pode criar um sentido sou eu mesma, ninguém mais. E, assim somos todos nós em nossas histórias.

Pessoas trazem presentes, situações, dores importantes. Percebo novamente a máxima da solidão, explicando que é isso mesmo, que não existe nada mais, nada mais além de mim e da troca voluntária, de esperar que a vida traga, que a vida leve. Nada mais... Simplesmente esperar que a vida se apresente.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

posse


Domingo à noite. Ao fundo, a voz da egípcia Um Kalthum – a cantora mais cultuada da música árabe. São músicas que se estendem às vezes por horas, onde os instrumentos ficam sozinhos durante longos minutos, até que ela apareça e suma novamente. Enquanto isso, khalil faz contorcionismos sobre o caderno: ela não entende porque perco meu tempo com a caneta, se poderia estar ocupada em lhe fazer carinho.

Ela não desiste. Seu corpinho ocupa o caderno todo e eu a acaricio. Ela fecha seus olhos felinos pré-adolescentes e curte, extasiada. Khalil é muito interessante, a apelidei de gata voadora. A cada dia, ela descobre uma nova possibilidade de subir mais um pouco. E, ultimamente, tenho sido vista de cima: do box, do armário, da geladeira...

Fico fascinada com a soberania dos felinos. Sejam eles pequenos ou grandes, agressivos ou não. Eles podem até não saber de nada, mas me passam a impressão de saber exatamente o que querem.

Consultei o tarô do Osho agora a pouco. Ele me trouxe a carta "O Compartilhar": "a Rainha do Fogo é tão rica, tão régia, que pode permitir-se dar presentes. Nem lhe ocorre a idéia de fazer um inventário do que tem, ou de deixar alguma coisa de lado para o futuro. Ela distribui os seus tesouros sem restrições, recebendo a todos sem distinção para que participem da abundância, da fertilidade e da luz que a envolve.

Quando você tira esta carta, isso sugere que você também se encontra em uma situação que lhe dá a oportunidade de compartilhar o seu amor, a sua alegria e o seu riso. Ao compartilhá-los, você descobrirá que se sente ainda mais pleno. Não há necessidade de ir a parte alguma nem de fazer nenhum esforço extraordinário. Você descobre que é capaz de desfrutar a sensualidade sem possessividade ou apego, e que pode dar origem a uma criança ou a um novo projeto, com a mesma criatividade plena. Tudo à sua volta parece estar se 'integrando'. Desfrute isso, firme-se nisso, e permita que a abundância que está em você e ao seu redor transborde."

Nada poderia ser mais oportuno. Não existe nada que nos pertença verdadeiramente. A posse é falsa, um sentimento que entorpece. Tornar presente que nada ou ninguém nos possui e que não possuímos, transforma a vida em algo mais leve.

A posse pode ser apenas confortável ou perversa. Ambas as formas desnecessárias. Ela pode até configurar-se por um período, mas a sensação é volátil. E, mesmo tendo a percepção de que possuímos tantas coisas ou pessoas, a vida nos mostra que podemos, de repente, não ter nada do que supúnhamos ter.

A posse não nos garante nada. Nada nos garante nada. Porém, compartilhar o que existe dentro de nós é uma dádiva. Receber o que os outros têm a dar, também.

Quando falamos em pessoas, a posse se transforma em algo mais complicado ainda. Supor que possamos subjugar, ou "ter à mão" alguém para quando nos for necessário, é bem pequeno. E, encarar que somos essencialmente solitários é a valiosa consciência se apresentando.

A solidão a que me refiro não traz nada de negativo. Acredito que esta percepção nos faz valorizar as pessoas e a nós mesmos. Cada qual templo único a ser respeitado e tratado com cuidado. Isso nos leva a compartilhar e a receber, sem querer simbiose. É uma questão de limites, de permitir a aproximação e o afastamento.

Intensidade



Quarta-feira da semana passada pedi uma orientação ao Osho. Ele me trouxe a carta "Intensidade":

"(...) você não tem que ser um seguidor, um imitador. Você precisa ser um indivíduo original; precisa encontrar por si mesmo o seu âmago mais profundo, sem nenhum guia (...). É uma noite escura, mas com a chama intensa dessa busca, você está destinado a chegar até o nascer do sol. Todos os que arderam com uma intensa procura encontraram o nascer do sol. Outros limitam-se a acreditar. Esses que acreditam não são religiosos; eles estão simplesmente evitando, com essa crença, a grande aventura da religião.

comentário: a figura dessa carta assumiu a forma de uma seta, movendo-se com o foco unidirecionado daquele que sabe precisamente aonde está indo. Movimenta-se com tamanha velocidade que quase se transformou em pura energia.  Sua intensidade não deve porém ser confundida com a energia obsessiva que faz as pessoas dirigirem seus carros à velocidade máxima para ir de um ponto a outro (...) A intensidade representada pelo Cavaleiro do Fogo é pertinente ao mundo vertical do momento instantâneo – um reconhecimento de que agora é o único momento que existe, e de que aqui é o único espaço. Quando você age com a intensidade do Cavaleiro do Fogo, é provável que isso provoque ondulação nas águas à sua volta. Alguns irão sentir-se ameaçados ou incomodados. As opiniões alheias importam pouco, porém; nada poderá detê-lo neste momento." (fonte: www.osho.com)

A reflexão sobre o momento começou numa detestável noite quente desta semana. Ao fundo, o som ensurdecedor da TV, que eu não podia reduzir em nome de uma ignorante educação.

O suplício continuou num telefonema. Ouvindo aquela voz tão familiar percebi a mesma manipulação de sempre. Com o telefone ainda na orelha, peguei o primeiro objeto que me veio às mãos e o estourei na parede. Percebi que bastava apertar o botão.

Desliguei o telefone. Ele não tocou mais. Daí, o silêncio, uma unha quebrada e um aviãozinho de madeira espatifado no chão. Droga! Fazia um século que eu estava deixando aquela unha crescer!

Tive sonhos estranhos aquela noite. Como é ruim quando as pessoas querem nos possuir. É quase como ser violentado, perder a alma. Chega a ser assustador como as pessoas querem suprir suas carências tentando dominar outras pessoas.

O Osho trouxe algo precioso: ser a gente mesmo nos tira de estereótipos, chavões, guetos. Somos únicos, multifacetados, diferentes dependendo do dia e da lua. E, às vezes (inacreditavelmente!) livres.
 

kassía


Dia desses estava frente a uma acácia-amarela, sentada num banco de praça de uma cidade pequena, conversando com Dona Yolanda. Ela contava coisas sobre sua vida, como foi feliz com seu marido gaúcho, a alegria dos bailes, a história dos filhos e como o marido morto lhe fazia falta.

O corpo envelhecido de Dona Yolanda e, atrás de nós, sua casa deteriorada pelo tempo – porém ainda bonita –, me fez pensar em como podemos nos alimentar do passado caminhando pra morte. E, ao mesmo tempo, me veio a sensação de que ao viver do passado e das boas lembranças que ele nos rende, estamos esgotando a nossa energia vital. Paramos de receber a novidade, a curiosidade se exaure. Neste momento, começamos a queimar memórias para alimentar a vida.

Dona Yolanda contava animada sobre quanto dançou com seu marido, como adorava viajar com ele e o quanto ele a enchia de vivacidade. Eu a ouvia – uma voz boa a de Dona Yolanda –, com os olhos fixos naquele final de tarde e na imensa acácia-amarela à minha frente.

Quanta beleza tem essa árvore. Não sabia que se chamava acácia. A bela Maria – a Ci –, que estava conosco há poucos minutos, havia dito que era assim o nome. Ao procurar no dicionário e descobrir que "acácia" tem origem na palavra grega "kassía"... achei a árvore ainda mais bonita.

transformação


por Cristina Thomé [10/12/2008]

Estava aniquilado. Frente ao povo e ao fogo dos ancestrais, reconhecia a derrota. O rosto duro, crispado de marcas, se rendia.

Nesta mesma noite outro guerreiro o substituiria. Estaria apartado das novas guerras, não encararia mais seu inimigo, não seriam ele e cavalo uma coisa só. Era assim que era.

Abriu as mãos e depôs sobre a fogueira seu guizo de pescoço. Os deuses não mais o veriam no campo de batalha. Era assim que era. Sua morte como chefe estava sendo entoada no cântico cadenciado das crianças.

A labareda deixava ver apenas marcas obtusas...

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

leve e pesado



"Nós, que somos sozinhos, não podemos ficar incomunicáveis". Ouvi esta frase dia desses e tenho pensado sobre ela. Por que não? Por que não podemos ficar incomunicáveis por um determinado período, quando precisamos do silêncio? Por que precisamos estar à disposição do outro em tempo integral ou por que o outro precisa estar à nossa disposição sempre?

Ontem à noite, assistindo ao filme "Vicky Cristina Barcelona", ouvi um personagem dizer que não gosta de rótulos, gosta de viver. De certa forma, uma coisa se une à outra. Passei boa parte da vida com o sentimento de inadequação. Movia-me entre as pessoas procurando ser aceita, moldando-me. Há algum tempo isso não é mais necessário. Tenho me fortalecido. Embora as quedas ocorram com freqüência, confio em mim e sei que viver é uma viagem, nunca um ponto único e final.

O mais importante é não ser águia em galinheiro. Nada contra ser galinha, tampouco águia. O livro de Leonardo Boff traz coisas fundamentais sobre aceitar a própria natureza. Em "A Águia e a Galinha", Boff fala sobre assumir a nossa verdade. Eu acrescentaria a importância em aceitar também a nossa natureza mutante, deixar fluir a flexibilidade. "Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos" [Heráclito]

Podemos não nos encaixar no que o outro quer ou espera. Essencial é que nos vejamos com verdade, tolerância e que continuemos gostando de nós mesmos, embora o outro possa não gostar. 

Diplomacia é elemento necessário para viver em harmonia. Nem sempre o ataque precisa estar presente para que nos distanciemos do que a intuição apresenta como negativo. Basta o afastamento silencioso e civilizado daquilo que possa nos agredir.

Ao consultar o Osho sobre estas questões ontem à noite, ele me trouxe Condicionamento. A imagem da carta: embora tentando se esconder, é impossível não perceber toda a exuberância do leão em meio às ovelhas.

"Condicionamento: a menos que você abandone a sua personalidade, você não será capaz de encontrar a sua individualidade. A individualidade é dada pela existência; a personalidade é imposta pela sociedade. Personalidade é conveniência social.

A sociedade não pode tolerar a individualidade porque a individualidade não acompanhará o rebanho, como uma ovelha. A individualidade tem a natureza do leão: o leão move-se sozinho. As ovelhas estão sempre em rebanho, na esperança de que estar em grupo será aconchegante. Em meio à multidão, o indivíduo sente-se mais protegido, seguro. Se alguém atacar, na multidão há todas as possibilidades de você se salvar. Mas, e estando só?

Cada um de vocês nasceu leão, mas a sociedade está sempre condicionando. Ela lhes imprime uma personalidade, uma personalidade agradável, simpática, muito conveniente, muito obediente.

Comentário: Esta carta lembra uma antiga história zen a respeito de um leão que foi criado por ovelhas, e pensava que era uma delas, até que um velho leão o capturou e o levou até um lago, onde lhe mostrou o seu próprio reflexo. Muitos de nós somos como esse leão – a imagem que temos de nós mesmos não advém da nossa própria vivência direta, mas das opiniões dos outros. Uma 'personalidade' imposta de fora substitui a individualidade que poderia ter-se desenvolvido de dentro. Nós nos tornamos apenas mais uma ovelha no rebanho, incapazes de nos movermos livremente, e inconscientes da nossa verdadeira identidade. É hora de dar uma olhadela no seu próprio reflexo no lago, e de tomar a iniciativa de libertar-se do que quer que tenha sido imposto como condicionamento pelos outros, com o objetivo de fazer você acreditar em qualquer coisa a seu respeito. Dance, corra, mexa-se, fale uma língua inexistente – tudo o que for necessário para acordar o leão adormecido dentro de você."


***

Prefiro me sentir um grande felino, capaz de me mover sozinha.

canseira2

por Cristina Thomé [02/12/2008]

Sem os olhos, ela saiu da escuridão. A bruxa via nada e praguejava com sua língua de fogo o ser vivente. Nas mãos tinha apertados pequenos ossos. Trazia ali comprimida a raiva do mundo.

Poderosa, a mulher feiticeira faria o caldo suicida. Haveria de matar-se essa noite. Cansara-se. E, mataria consigo o ódio, o desprezo pelo humano e temporal.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

canseira


Depois de caminhar e correr quase 14 km, estou exausta, pernas cansadas, corpo moído. Ao chegar em casa, peço orientação ao Osho sobre coisas que surgiram na mente durante o exercício.

Concentrei-me e retirei a carta Sofrimento:
"Esta dor que o aflige não deve deixá-lo triste, lembre-se disso. É este o ponto que as pessoas continuam a não compreender... Esta dor é apenas para deixá-lo mais alerta – porque as pessoas só ficam atentas quando a seta vai fundo no seu coração e as fere. De outra maneira, não despertam. Quando a vida é fácil, confortável, conveniente, quem se preocupa? Quem se dá ao trabalho de ficar alerta? Quando morre um amigo, apresenta-se uma possibilidade. Quando a sua mulher o abandona – naquelas noites escuras, você sente solidão. Você amou tanto aquela mulher e arriscou tudo por ela e, então, de repente, um dia, ela vai-se embora. Chorando na sua solidão... essas são as ocasiões em que, sabendo aproveitá-las, você poderá tornar-se consciente. A seta está ferindo: então é possível usá-la.
A dor não existe para fazê-lo infeliz: ela está aí para torná-lo mais consciente! E, quando você se torna consciente, a infelicidade desaparece.

Comentário: (...) Tempos de grande sofrimento trazem em si, potencialmente, tempos de grande transformação. Para que a transformação aconteça, porém, é preciso irmos fundo às raízes da nossa dor, vivenciando a dor exatamente como ela é, sem culpa, sem autopiedade."

Khalil interditou o caderno. Acariciando seu corpinho sobre as palavras e saboreando uma Bohemia gelada, me deixo embalar... Quanto tempo levei para encontrar a mim mesma? Muito tempo... E, sou grata à dor que me trouxe a mim.

Somos ridículos, no final das contas. Colocamos coisas à nossa frente, tentando dar mais uma mão de verniz. Ao querer ficar "bem na fita" para os outros, enganamo-nos.

É estranho perceber que fugimos de nós mesmos. As pessoas existem, mas a troca tem limites (ainda bem!). O equilíbrio está em dar o que podemos e receber o que o outro pode dar. Não há filho, marido, cunhado, amante, primo, mulher, amigo, bisavó, papagaio... que vá cobrir o nosso vazio. 

O nosso bem-estar depende unicamente de nós. Existe muito medo em encarar isso! Ninguém de fora trará a sensação de paz. Não existe uma metade nossa solta por aí, nem um pedacinho sequer que nos completará, além de nós mesmos. Trocar e aprender, sim! Esperar,  não!

A dor tira a frescura, descasca o verniz. O sofrimento nos faz mais verdadeiros, melhores. É a tal da consciência!

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Know how


por Cristina Thomé

A morte pacientemente saboreia um cachimbo. Imperceptível, sorve o fumo e observa a paisagem exposta pela ampla janela. Encostada como está, vislumbra o acotovelamento de centenas de pessoas na cidade. Seres apressados em todas as direções, sempre atrasados para alguma coisa.

Terno bem cortado, abotoaduras, sapatos impecavelmente lustrados, a morte traz vaga lembrança do sentimento de urgência. Todo luxo e prazeres já são eternidade para ela. Conquistou este posto em séculos de trabalho bem feito.

Vagueia sábia e firmemente entre os humanos. Não há temores. Seu papel se restringe a estirpar a vida. Conduzir almas é trabalho para entidades que têm a incumbência da passagem.

tempo de esquecer


por Cristina Thomé [outubro, 2008]

Havia medo naquele desejo. O homem que calculava quase se rendia a seus sentimentos. Ainda relutava, mas havia a vontade contida  justificando um passo diferente. Porém, homem experiente, precisava medir.

A jovem senhora procurava se acalmar. De ímpetos diversos viviam as duas criaturas. A mulher desejava tanto o homem que calculava, mas sabia que ele não viria.

Ela teria que conviver com a falta daquele homem que sugeria aparecer ou, então,  enfrentar a sólida ausência. Transformou o vácuo em algo criativo. Atitude bem ponderada, simplesmente decidiu esquecer.

sábado, 22 de novembro de 2008

Espera

por Cristina Thomé [2000]

Na ponte, esperava da água uma resposta. Um peixe dourado que viesse falar com ela sobre seus medos, uma concha fugida do mar que por ali aparecesse. Esperava a chuva, com suas gotas para fazerem círculos pequenos na água que depois fossem aumentando. Da chuva, o vento que mexesse no seu vestido de tecido levinho e lhe fizesse sonhar. Esperava um sinal. Da água esperava tanto...

Abandonando janeiro


Em janeiro aconteceu algo impressionante, que impulsionou as mudanças que já haviam sido detonadas em mim. O que aconteceu não interessa. O importante é que foi algo bom e ruim, pois me trouxe ao longo do ano um sentimento recorrente de rejeição.

Daí, pensando sobre isso ontem, veio uma imagem do passado: a camionete se distanciando. Nela, meu pai e meu irmão ou, então, minha irmã. Eu sempre ficava. Enquanto ajudava minha mãe a cuidar da casa, cozinhar, lavar o imenso quintal da casa no sítio, ficava imaginando o quê de bacana eles estariam fazendo e que eu estava perdendo. Sentia-me abandonada, vivendo coisas sem graça. Tudo de mais interessante estava lá, com eles...

Tão oportuna essa lembrança. É quando sentia-me "deixada de fora", excluída. Parece que nada que eu fizesse seria tão maravilhoso quanto o que eles estavam vivendo naquele momento. E, essa sensação de abandono a vida traz repetidas vezes. Ela vem, depois vai embora. E, novamente uma situação a traz de volta, e vai embora. E, de novo, de novo...

"O forasteiro", carta do tarô, deixou isso tão claro ontem à noite. Fiz uma pergunta bastante específica e o osho me trouxe:

"Sempre que nos sentimos deixados de fora, excluídos, isso gera essa sensação de ser uma criança pequena e desemparada. Não é de causar espanto, pois esse sentimento está profundamente enraizado nas nossas experiências da mais tenra infância. O problema é exatamente esse, porque estando tão profundamente enraizado, o sentimento ressurge repetidas vezes em nossa vida, como se fosse uma fita gravada. Neste momento uma oportunidade lhe está sendo oferecida para você interromper essa gravação, para deixar de atormentar-se com a idéia de que, de alguma maneira, você 'não está à altura' para ser aceito e recebido. Reconheça que as raízes desse sentimento estão no passado, e deixe ir embora essa dor antiga. Isso irá trazer-lhe lucidez para enxergar como pode abrir o portão e iniciar-se naquilo que você tanto anseia ser".

Dei-me conta, então, que janeiro me trouxe a possibilidade de abrir outra porta e olhar através dela. A consciência de que o que me acontece depende da festa que eu própria preparo pra mim, me enche de tranqüilidade. O que eu faço é maravilhoso, o momento presente é fascinante. Sentindo as coisas dessa forma, o estímulo externo fica menor. Não fico vivendo o "maravilhoso" dos outros. Vivo o meu, que é tão gostoso.

Estou abandonando janeiro, pelo menos da forma como o conheci. Ele pode estar se transformando. Mas o importante é que não me sinto excluída, não me sinto de fora.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

...


por Cristina Thomé [26/04/2008]

Sinto frio, meu corpo treme. Um pouco tonto, vejo ao meu lado um corpo caído. Levanto-me do chão, não entendo nada. Percebo o vermelho espesso que cobre parte da minha pele, sangue coagulado, pegajoso.

Tiro meus olhos do branco marmóreo daquele corpo estirado no chão. Parece homem na casa dos 30 anos. Abro meus olhos em panorama. O que vejo é um ambiente sujo, um beco cheio de lixo. Que lugar é este? O que faço aqui? Quem é este no chão?

Não consigo me ater a nada, não encontro respostas... A última coisa da qual me lembro é do carrinho de compras com sua roda torta e eu tentando manobrá-lo em direção ao estacionamento. Nada mais me ocorre. Não me lembro...

Estou sujo de fuligem, tenho manchas escuras nas roupas e sangue nas mãos. O jovem homem ao meu lado tem um corte profundo na garganta e uma enorme poça de sangue ao redor. O que aconteceu comigo? O que aconteceu aqui?

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Destino e discursos



Casualmente fui confrontada ontem com verdades diferentes. Ou não foi nada casual... Sei lá! Talvez seja o tal do destino mexendo seus fios de marionete e a gente sempre achando que está no controle...

As situações têm me mostrado que não existe "verdade". Existem sim,  "verdades". Leonardo Boff – e, acho que um monte de gente além dele...– diz que "um ponto de vista é a vista de um ponto".  Depende a partir de onde se observa, determinada coisa nos parecerá sob determinada maneira. Se alguém, do outro lado do vale, se debruçar para olhá-lo, verá outra paisagem, porém o mesmo vale...

Ontem ouvi um novo ponto de vista sobre uma história que já conhecia. E, trazendo à memória os outros pontos de vista, nenhum deles me pareceu errado. Apenas diferentes, porque pertencem a diferentes pessoas.

Isso me fez pensar sobre discurso: o quebra-cabeças das palavras. Uma coisa é de fato ver um determinado assunto sob determinada perspectiva. A tolerância implica em aceitar diferentes pontos de vista. Mas, existe o risco de manipularmos as palavras de forma que o outro acredite que o nosso ponto de vista é o mais adequado. Este pode ser um ato premeditado ou inconsciente.

Palavras são grandes esconderijos, às vezes. E não é lá muito "fair play" manipular, inverter o discurso, para convencer o outro de que temos razão. Tenho pensado sobre discurso, pontos de vista e culpa. Se vibramos no universo da culpa, somos presas fáceis do discurso alheio. É uma questão do outro descobrir onde está nossa vulnerabilidade e, pronto!

Ficar nu, despido de discurso, é tarefa das mais difíceis. O outro poderá ver em nós o que somos ou o que ele acha que somos. Podemos argumentar, mas não impor. Ao deixar que o outro nos veja livremente, abrimos caminho para que ele fique ou para que ele vá embora. E daí, precisamos gostar e acreditar em nós mesmos para aceitar a rejeição: ser rejeitado pelo que o outro sinceramente viu em nós. Ou, surpresa: o outro pode ficar porque gostou do que viu.

Criar uma teia para segurar as pessoas, através da manipulação do discurso, é muito cruel! Principalmente quando o outro ainda é dependente de nós, quando o outro não acredita em si próprio, está perdido ou cansado. E quem faz isso pode apenas estar tentando se livrar da culpa que acha que tem, jogando-a nos ombros de outra pessoa e, se enganando, achando que a sua verdade é a única!

Bem, depois de todas essas reflexões paralelas a um papo comprido, cheguei em casa e pedi uma orientação ao Tarô: ele me mostrou "O Bobo".


O bobo
(a carta zero)

Bobo é quem confia sempre; bobo é quem continua confiando, contrariamente ao que recomendam todas as experiências vividas. Você o engana, e ele confia em você; você o engana de novo, e ele continua confiando; você o engana mais uma vez, e ele ainda confia em você. Então você dirá que ele é um bobo, que não aprende. A confiança dele é enorme; é uma confiança tão pura que ninguém consegue corrompê-la.

Seja um bobo no sentido taoísta, no sentido zen. Não tente criar uma muralha de conhecimentos em torno de você. Seja qual for a experiência que venha a você, deixe-a acontecer e depois siga em frente, descartando-se dela. Vá limpando sua mente o tempo todo; vá morrendo para o passado, de forma a permanecer no presente, no aqui-agora, como se tivesse acabado de nascer. No começo isso será muito difícil. O mundo começará a tirar vantagem de você... deixe que o façam. São uns pobres companheiros.

Ainda que trapaceiem você, que o enganem e roubem, deixe acontecer, porque aquilo que é realmente seu não pode ser roubado, o que realmente lhe pertence ninguém pode tirar de você. E a cada vez que você não permitir que as circunstâncias o corrompam, a oportunidade se transformará em um efeito de integração dentro de você. A sua alma se tornará mais cristalizada.

Comentário:
momento a momento e a cada passo o Bobo vai deixando o passado pra trás. Só leva sua pureza, sua inocência e sua confiança, simbolizadas pela rosa branca na mão. O estampado do seu colete apresenta as cores dos quatro elementos do Tarô, indicando que ele está em harmonia com tudo o que existe à sua volta.  A sua intuição está à flor da pele. Neste momento, o Bobo tem o apoio de todo o universo para dar o seu salto em direção ao desconhecido. Aventuras esperam por ele no rio da vida.

A carta está indicando que, se neste momento você confiar em sua intuição, na sua sensibilidade para o "caminho certo" das coisas, você não poderá errar. Os seus atos poderão parecer "tolos" para os outros, ou até para você mesmo, se tentar analisá-los com a mente racional. A posição "zero" porém, ocupada pelo Bobo, mostra que a confiança e a inocência é que são os guias, e não o ceticismo e a experiência passada. (fonte: www.osho.com)

domingo, 16 de novembro de 2008

Momento a momento

"A vida é um grande oceano no qual você pode se divertir, se se desfizer de todos os julgamentos, de suas preferências e do apego aos detalhes dos seus planos de longo prazo. Esteja disponível para o que vier ao seu encontro, da forma como vier. E não se preocupe se tropeçar ou cair: levante-se, sacuda a poeira, dê uma boa gargalhada e vá em frente".

Esta foi a orientação do Tarô Zen pra mim, esta noite. Ouço, ao fundo, o DVD do show acústico de Roberto Carlos, tomo uma Bohemia e penso na vida. Entrego-me ao sabor da brisa quente que entra pela sacada.

Khalil acaba de caminhar sobre este texto. Ela é engraçada e senhora de si. Não está nem aí para o que eu quero. Khalil está com calor, quer carinho e se espatifa sobre o caderno. Entramos num acordo e consigo continuar.

Explicando a filosofia Zen, o tarô diz: "nas palavras de Osho, não se trata da capacidade de idolatrar 'budas', mas de tornar-se um 'buda'; não de seguir outros, mas de desenvolver a consciência interior que traz uma qualidade de luz e de amor a tudo o que faz".

A sensação leve de que viver é bom tem me acompanhado. Boa parte da vida passei preocupada com o juízo das pessoas a meu respeito. Hoje percebo como isso é uma grande besteira. É bom demais viver me observando, me respeitando, dando-me espaço para experimentar da vida, para conhecer.

Se algo der errado, tudo bem! Como diz o tarô: "... dê uma boa gargalhada e vá em frente". Tenho sentido um grande afeto pelas pessoas e, assim como eu tenho me aceitado, também as tenho visto de outra forma. Talvez o conceito correto para isso seja amor.

Quando deixamos "os nossos olhos na caixa de brinquedos"– como diz o Rubem Alves –, a vida fica mais colorida, intensa. A minha própria companhia tem sido agradável. Às vezes a mente fala, fala, fala... mas, tudo bem! Boa parte das vezes tenho conseguido ficar fora disso e apenas observar.

Agora, o querido Roberto Carlos canta "É preciso saber viver", com Toni Belotto – dos Titãs –, "mandando ver" no violão. Nada melhor para encerrar este texto.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

abandono


por Cristina Thomé [.../05/2008]

"Por quê amamos mais os que fogem de nós?" Na aridez do deserto, essa frase não lhe saía da cabeça. Esperava o último ônibus para definitivamente abandonar aquele lugar. O choro parado na garganta, o véu insistente em lhe tapar o rosto, levado pelo vento seco.

Sabia que nunca retornaria àquela terra. Deixaria tudo o que mais lhe aqueceu a alma, todos os bens preciosos que lhe povoaram os sonhos dos últimos meses. O mais forte, maduro e verdadeiro ficaria pra trás, deslocando-se com as areias nômades daquele lugar misterioso. Por isso, melhor.


Vôo e silêncio


por Cristina Thomé [30/09/2008]

A janela exibia o nascer do sol refletido na lâmina d'água. O lago era o reduto dos pássaros que migravam do sul em busca do calor. Com a cabeça recostada no vidro, Clara observava mais um princípio de manhã, após uma longa madrugada insone. Não havia sono que a possuísse em noites como aquela. Clara era mulher forte, branca, de olhar profundo, cabelos negros e lisos que lhe ocupavam abundantemente os ombros e as costas.

Como sempre, nos últimos anos, vestia a camisola branca do sanatório – elegantemente chamado de "casa de repouso" pela família. Pessoas, aliás, que não via há muito tempo. Logo após sua internação as visitas foram intermitentes. Com o passar dos meses foram rareando, até tornarem-se nulas com os anos. Para Clara essa ausência fazia diferença nenhuma.

Acostumara-se desde cedo com o isolamento. Não que ela o quisesse de fato. Não havia escolha. Clara vivia absorta em suas próprias sensações, seus pensamentos. Ela não estabelecia conexões. Porém seu mundo era colorido e profundo, como seus olhos. Para se aproximar do que Clara sentia, talvez apenas submergindo no mar. Entregar o corpo à suavidade das águas, ao absoluto silêncio que entorpece os sentidos.

Viver dessa forma não lhe trazia sofrimento: era o universo de Clara, e pronto! Não haviam manipulações, não havia troca. Ela esboçou um sorriso quando os raios de sol avançaram pela janela iluminando suas mãos, seu rosto. Nesse momento, os pássaros alçaram vôo. Seus olhos os acompanharam, como se ela própria fosse um deles.


desejo


por Cristina Thomé [13/11/2008]

Nuvens aceleradas sobre a lua cheia. Ela ilumina o desejo na minha noite. A música libanesa ocupa a sala, impregna de sensualidade o vazio. Pena não ter um arguille, para sorver a fumaça além da volúpia.

Fecho os olhos, o "oud" pontea a melodia. É como se houvesse um chamado, algo pedindo meu corpo. Retenho a sensação, arrepio. Imagino minhas unhas compridas riscando as costas de alguém. Meu corpo inteiro acariciado, pernas abertas, saciada.

O frio que vem de fora me pega em cheio. Levanto, desligo o fogo do chá. Além da música, não há ninguém aqui, exceto a bebida quente que me acalentará.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Uma bela visão















por Cristina Thomé [23/09/2008]

Mal se divisava na paisagem de outono a figura da menina. Vinha pela estrada com seus cabelos loiros de milho, balançando as mãos ao sabor da caminhada. À medida que se aproximava, era possível perceber o vestido em tom puro de amarelo. Trazia na cintura uma fita que se fechava em laçarote vistoso às costas.

Suas faces estavam rosadas, talvez efeito do frio e do esforço. Ao passar em frente à oficina me ofereceu generoso sorriso. Tentava segurar seu vestido e domar o cabelo, que dançava com o vento.

Esta certamente foi uma bela visão naquela manhã de quarta sem movimento. Com uma das mãos retirei o cigarro da boca e, em meio a uma baforada sorri para a menina. Com a outra mão retirei o chapéu e a cumprimentei.

Ela sentiu-se profundamente tocada por tamanha deferência. Ficou um tempo parada e acenou a mãozinha. Subitamente virou-me as costas e continuou seu trajeto. Observei a menininha até que o amarelo de seu vestido confundiu-se com os tons marrons das folhas daquele outono.

Meus olhos permaneceram parados no horizonte. A fumaça do cigarro subia e, em meio àquela névoa, o passado me chamou. A lembrança recuou setenta anos e pude me ver, menino, naquela mesma estrada. Andava com os pés descalços na chuva. Tinha calças curtas, puídas. Já era o terceiro ou quarto filho a usar aquelas mesmas roupas.

Acreditava piamente que o destino me reservava viagens compridas, conhecimento e vitórias em lugares que sequer poderia imaginar. De fato, a vida me levou, mas não pelos melhores caminhos. Mentalmente revisitei coisas que gostaria de haver esquecido. Mas a memória ou a recordação nem sempre são benevolentes.

Fui salvo das lembranças pelo calor do cigarro que me queimava os dedos. Apesar de tudo, sentia-me feliz por estar novamente ali, entre a graxa e os carros à espera de conserto. Sentia-me reconfortado porque meus olhos cansados tinham outra vez a velha paisagem, tão familiar.

Celebração

Ontem à noite tomei um banho quente e fui pra cama acompanhada de uma xícara de chá. Lá fora, caía uma chuva mansa. Concentrei-me e pedi ao Tarô do Osho uma orientação. A carta que o tarô me ofereceu foi reconfortante: "Celebração".

"A vida é um momento para ser celebrado, desfrutado. Torne-a divertida, uma celebração, e então você entrará no Templo. Esse templo não é para os tristes e desanimados, nunca foi para eles. Olhe para a vida: você vê tristeza em alguma parte? Você já viu uma árvore deprimida? Você já encontrou um pássaro movido por ansiedade? Já viu um animal neurótico"Não, a vida não é assim, absolutamente. Só o homem é que seguiu um caminho errado, se desviou em algum lugar, porque ele se considera muito sábio, muito esperto. Sua esperteza é o seu mal. Não seja sábio demais. Lembre-se sempre de parar; não vá a extremos. Um pouco de tolice e um pouco de sabedoria fazem bem, e a combinação certa faz de você um buda... (Osho - I Celebrate Myself - chapter 4)

Comentário: Essas três mulheres dançando ao vento e na chuva, nos fazem lembrar de que uma celebração nunca precisa ficar na dependência de circunstâncias exteriores. Não é preciso esperar por um feriado especial ou por uma ocasião formal, nem por um dia de sol sem nuvens. A verdadeira celebração nasce de uma alegria que primeiro é experienciada profundamente dentro do seu ser, e que se derrama num transbordamento de canto e dança, de riso, e até mesmo de lágrimas de gratidão.

Quando você tira esta carta, é um sinal de que está se tornando cada vez mais disponível e aberto às muitas oportunidades que existem para celebrar a vida e contagiar outras pessoas. Não se preocupe em programar uma festa na sua agenda. Deixe o cabelo ao natural, tire os sapatos, e comece a pular nas poças d'água agora mesmo. A festa está acontecendo à sua volta, a cada momento!
 
[reprodução de www.osho.com]




A complicada arte de ver


por Rubem Alves

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões – é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse "Esta perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: "Rosa de água com escamas de cristal". Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moiséis diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.  O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nitzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa – garrafa, prato, facão – era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas – e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso – porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver – eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

[o texto acima foi extraído da seção "Sinapse", jornal "Folha de S. Paulo", versão online, publicado em 26/10/2004]


terça-feira, 4 de novembro de 2008

KHALIL na minha barriga. Por enquanto, é só...