sábado, 30 de outubro de 2010

um


Por Cristina Thomé

No livro de arte sobre a mesa há a imagem de um menino, que observa. Olhos voltados para o canto esquerdo, mantém-se isolado. O tempo paira alheio, o mundo suspenso ao redor.

A pintura renascentista do menino captura o único, o olhar absorto congelado por outro ser que o registra. Quem era o menino? Sua identidade o tempo roubou, sua alma misturada e voluntariosa perambula por aí.

Somos um, na embolada história de existir. A despeito de generalidades, o espírito não se comprime, não se amalgama.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

francisco


Por Cristina Thomé

Há um Francisco que me acompanha desde a adolescência. Distanciados um do outro, ele aparecia vez em quando em forma de carta, trazendo um pouco de si. Entre tantas coisas, lembro-me de como se sentiu pequeno ao presenciar um vilarejo ser inundado no sertão. A água que subia inundava a ele próprio com a solidão daquele lugar.

Presença sutil, Francisco continua a me acompanhar de longe. Pelo pouco que também sei, continuo acompanhando-o daqui. Não sei exatamente do que Francisco gosta, exceto seu time de coração. De minha parte, amo Elvis Presley, Willie Nelson, tempo de chuva, a chuva, sorvete de creme, andar descalça, simplicidade, ficar quieta, paz...

Francisco me diz que é triste o que escrevo. Diria a ele que é morno, com gosto de domingo à tarde, de brisa tépida, bebendo vinho sob as árvores no sítio de minha infância. O que talvez eu sentisse sendo adulta na minha criança. Um deixar-me ficar, sem pressa.

De Francisco, continuo guardando o olhar profundo e interessado. Sei que ele tem pessoas que ama, muito. Sou grata pela delicadeza de sua presença.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

onegin

Por Cristina Thomé

Novamente assisti "Onegin". É a quinta ou sexta vez que o vejo e me emociono profundamente. Talvez mais a cada nova vez porque se tornam familiares os movimentos contidos, a sutileza que brota daquilo que silencia.

Há a beleza exata e assustadoramente singela de Liv Tyler. A perdição nos olhos tristes de Ralph Fiennes. Pelo filme paira a melancolia da impossibilidade, do tempo fora de sincronia.

A poesia impregna o gelo, o branco da paisagem. Nada mais apropriado para simbolizar a distância fria que o tempo pode cavar. E tudo circunstancial. Não há culpados para a falta de conexão.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

nascer

por Cristina Thomé

O anjo recém-nascido dança na sala da manhã. Grande já, ele nasceu. Na janela, o mar dança com o anjo que dança na sala da manhã.

Ele nasceu para me ver. Agachada, quietinha, choro baixo. Meus olhos acompanham o anjo da manhã na sala de maresia.

perde-se

por Cristina Thomé

Você não quer ouvir. Meus pés cansados já me carregaram o suficiente para que eu repita com veemência como é fundo o que sinto. Não adianta, eu sei.

A poeira cobriu nossa história. O vento não a trará mais à tona. Ele gira e gira e gira vagarosamente atrás de lembranças. Há no final da estrada um sol poente. Nuvens alaranjadas na lente dos óculos escuros.

Nada há mais aqui que você reconheça, exceto o que você não quer ouvir.

lugar algum

por Cristina Thomé

O que mais falar? Pare. De perder tempo. Pare de se perder. Meta nessa cabeça estúpida que há algo bom para se manter nadando.

Esqueça a margem. Você não chegará a margem alguma. Abandone-se na água, vire lodo, vire peixe, cachoeira, caia sobre as pedras. Deixe-se levar, entregue-se, vire mar.

sábado, 17 de abril de 2010

[...]

por Cristina Thomé

Como rio caudaloso, calmo e constante, o tempo passa. Mal damos conta de que ele segue alheio, exceto à sua obstinada necessidade de continuar. Penso que existem dois tempos: há o de natureza cíclica, que recomeça a cada vida que surge. E, há o tempo onipotente e solitário, senhor de todos os outros que seguem a vida dos indivíduos.

Quando jovens, a força que nos habita gera movimentos essenciais para a renovação. Sua natureza é de ruptura. Então, o tempo continua agindo e nos faz diferentes. A complacência nos ocupa e uma nostalgia estranha passa a conviver conosco. À medida que o tempo abre suas asas densas, mais e mais o silêncio se instaura. Há mais em contemplar. O simbólico se expande, a profundidade se instala.

Forças propulsoras irrompem em novas vidas. Outras tantas se transformam e aceitam o fluxo. Não se trata de resignação. É outra coisa, mas ainda não sei o nome.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

escape

por Cristina Thomé

Quando sorrio ninguém diz que as coisas estão complicadas. Estava pensando nisso pela manhã. Faz frio e gosto de sentar no banco da praça perto de casa. Sinto-me confortável com o suéter de lã e o cigarro entre os dedos. Depois de uma longa tragada, cubro a paisagem com uma nuvem de fumaça vinda direto dos pulmões.

Me abandono no momento calmo, na trégua comigo mesmo. Venho me adaptando bem, desde a última internação. Tenho medo de me descontrolar novamente. Por cautela, tenho usado de minhas táticas: o sorriso, um verdadeiro calmante social – mesmo quando o fluxo de pensamentos é contínuo e estonteante, uma viagem ruim. E, ultimamente, falo pouco. Um dia sucede o outro. Quem sabe eu consiga não voltar para lá.

despertar

por Cristina Thomé

O som insistente e abafado. É o despertador do tempo que me tira do torpor. Passaram-se meses, acordo para o ordinário cotidiano. Toda vez retorno para ele, que me recebe com o mesmo silencioso sorriso cínico. Retomarei a busca de sentido.

A incógnita é: para quê? Tateio no escuro, a cegueira me orienta no labirinto. Dou voltas e o mesmo som me acompanha, o cheiro familiar remonta histórias. Sinto canseira, o corpo dói. Porém, não tenho escolha. Preciso caminhar, outra vez. Até que o sono generoso me alcance, outra vez.