sábado, 27 de dezembro de 2008

nada


Caminhei e corri muito ontem e,  como é bom quando o vento e a chuva tomam conta do corpo e a música estoura no ouvido... Uma combinação perfeita. Interessante perceber as pessoas quando estou correndo: todas ocupam uma ilha particular. Todas conectadas, entregues à sua própria trilha sonora. E, ninguém está nem aí pra ninguém. Uma sensação maravilhosa!

Bem, continuo na mesma, às vezes um pouco aprisionada pelas circunstâncias. Porém, com algumas pistas. Hoje assisti "Na Natureza Selvagem". Um filme que me emocionou muito. E, não há como não pensar na trajetória, na vida, no meu próprio caminhar. Às vezes as coisas não fazem muito sentido. Talvez o segredo esteja aí: dar algum sentido a isso. E, quem pode criar um sentido sou eu mesma, ninguém mais. E, assim somos todos nós em nossas histórias.

Pessoas trazem presentes, situações, dores importantes. Percebo novamente a máxima da solidão, explicando que é isso mesmo, que não existe nada mais, nada mais além de mim e da troca voluntária, de esperar que a vida traga, que a vida leve. Nada mais... Simplesmente esperar que a vida se apresente.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

posse


Domingo à noite. Ao fundo, a voz da egípcia Um Kalthum – a cantora mais cultuada da música árabe. São músicas que se estendem às vezes por horas, onde os instrumentos ficam sozinhos durante longos minutos, até que ela apareça e suma novamente. Enquanto isso, khalil faz contorcionismos sobre o caderno: ela não entende porque perco meu tempo com a caneta, se poderia estar ocupada em lhe fazer carinho.

Ela não desiste. Seu corpinho ocupa o caderno todo e eu a acaricio. Ela fecha seus olhos felinos pré-adolescentes e curte, extasiada. Khalil é muito interessante, a apelidei de gata voadora. A cada dia, ela descobre uma nova possibilidade de subir mais um pouco. E, ultimamente, tenho sido vista de cima: do box, do armário, da geladeira...

Fico fascinada com a soberania dos felinos. Sejam eles pequenos ou grandes, agressivos ou não. Eles podem até não saber de nada, mas me passam a impressão de saber exatamente o que querem.

Consultei o tarô do Osho agora a pouco. Ele me trouxe a carta "O Compartilhar": "a Rainha do Fogo é tão rica, tão régia, que pode permitir-se dar presentes. Nem lhe ocorre a idéia de fazer um inventário do que tem, ou de deixar alguma coisa de lado para o futuro. Ela distribui os seus tesouros sem restrições, recebendo a todos sem distinção para que participem da abundância, da fertilidade e da luz que a envolve.

Quando você tira esta carta, isso sugere que você também se encontra em uma situação que lhe dá a oportunidade de compartilhar o seu amor, a sua alegria e o seu riso. Ao compartilhá-los, você descobrirá que se sente ainda mais pleno. Não há necessidade de ir a parte alguma nem de fazer nenhum esforço extraordinário. Você descobre que é capaz de desfrutar a sensualidade sem possessividade ou apego, e que pode dar origem a uma criança ou a um novo projeto, com a mesma criatividade plena. Tudo à sua volta parece estar se 'integrando'. Desfrute isso, firme-se nisso, e permita que a abundância que está em você e ao seu redor transborde."

Nada poderia ser mais oportuno. Não existe nada que nos pertença verdadeiramente. A posse é falsa, um sentimento que entorpece. Tornar presente que nada ou ninguém nos possui e que não possuímos, transforma a vida em algo mais leve.

A posse pode ser apenas confortável ou perversa. Ambas as formas desnecessárias. Ela pode até configurar-se por um período, mas a sensação é volátil. E, mesmo tendo a percepção de que possuímos tantas coisas ou pessoas, a vida nos mostra que podemos, de repente, não ter nada do que supúnhamos ter.

A posse não nos garante nada. Nada nos garante nada. Porém, compartilhar o que existe dentro de nós é uma dádiva. Receber o que os outros têm a dar, também.

Quando falamos em pessoas, a posse se transforma em algo mais complicado ainda. Supor que possamos subjugar, ou "ter à mão" alguém para quando nos for necessário, é bem pequeno. E, encarar que somos essencialmente solitários é a valiosa consciência se apresentando.

A solidão a que me refiro não traz nada de negativo. Acredito que esta percepção nos faz valorizar as pessoas e a nós mesmos. Cada qual templo único a ser respeitado e tratado com cuidado. Isso nos leva a compartilhar e a receber, sem querer simbiose. É uma questão de limites, de permitir a aproximação e o afastamento.

Intensidade



Quarta-feira da semana passada pedi uma orientação ao Osho. Ele me trouxe a carta "Intensidade":

"(...) você não tem que ser um seguidor, um imitador. Você precisa ser um indivíduo original; precisa encontrar por si mesmo o seu âmago mais profundo, sem nenhum guia (...). É uma noite escura, mas com a chama intensa dessa busca, você está destinado a chegar até o nascer do sol. Todos os que arderam com uma intensa procura encontraram o nascer do sol. Outros limitam-se a acreditar. Esses que acreditam não são religiosos; eles estão simplesmente evitando, com essa crença, a grande aventura da religião.

comentário: a figura dessa carta assumiu a forma de uma seta, movendo-se com o foco unidirecionado daquele que sabe precisamente aonde está indo. Movimenta-se com tamanha velocidade que quase se transformou em pura energia.  Sua intensidade não deve porém ser confundida com a energia obsessiva que faz as pessoas dirigirem seus carros à velocidade máxima para ir de um ponto a outro (...) A intensidade representada pelo Cavaleiro do Fogo é pertinente ao mundo vertical do momento instantâneo – um reconhecimento de que agora é o único momento que existe, e de que aqui é o único espaço. Quando você age com a intensidade do Cavaleiro do Fogo, é provável que isso provoque ondulação nas águas à sua volta. Alguns irão sentir-se ameaçados ou incomodados. As opiniões alheias importam pouco, porém; nada poderá detê-lo neste momento." (fonte: www.osho.com)

A reflexão sobre o momento começou numa detestável noite quente desta semana. Ao fundo, o som ensurdecedor da TV, que eu não podia reduzir em nome de uma ignorante educação.

O suplício continuou num telefonema. Ouvindo aquela voz tão familiar percebi a mesma manipulação de sempre. Com o telefone ainda na orelha, peguei o primeiro objeto que me veio às mãos e o estourei na parede. Percebi que bastava apertar o botão.

Desliguei o telefone. Ele não tocou mais. Daí, o silêncio, uma unha quebrada e um aviãozinho de madeira espatifado no chão. Droga! Fazia um século que eu estava deixando aquela unha crescer!

Tive sonhos estranhos aquela noite. Como é ruim quando as pessoas querem nos possuir. É quase como ser violentado, perder a alma. Chega a ser assustador como as pessoas querem suprir suas carências tentando dominar outras pessoas.

O Osho trouxe algo precioso: ser a gente mesmo nos tira de estereótipos, chavões, guetos. Somos únicos, multifacetados, diferentes dependendo do dia e da lua. E, às vezes (inacreditavelmente!) livres.
 

kassía


Dia desses estava frente a uma acácia-amarela, sentada num banco de praça de uma cidade pequena, conversando com Dona Yolanda. Ela contava coisas sobre sua vida, como foi feliz com seu marido gaúcho, a alegria dos bailes, a história dos filhos e como o marido morto lhe fazia falta.

O corpo envelhecido de Dona Yolanda e, atrás de nós, sua casa deteriorada pelo tempo – porém ainda bonita –, me fez pensar em como podemos nos alimentar do passado caminhando pra morte. E, ao mesmo tempo, me veio a sensação de que ao viver do passado e das boas lembranças que ele nos rende, estamos esgotando a nossa energia vital. Paramos de receber a novidade, a curiosidade se exaure. Neste momento, começamos a queimar memórias para alimentar a vida.

Dona Yolanda contava animada sobre quanto dançou com seu marido, como adorava viajar com ele e o quanto ele a enchia de vivacidade. Eu a ouvia – uma voz boa a de Dona Yolanda –, com os olhos fixos naquele final de tarde e na imensa acácia-amarela à minha frente.

Quanta beleza tem essa árvore. Não sabia que se chamava acácia. A bela Maria – a Ci –, que estava conosco há poucos minutos, havia dito que era assim o nome. Ao procurar no dicionário e descobrir que "acácia" tem origem na palavra grega "kassía"... achei a árvore ainda mais bonita.

transformação


por Cristina Thomé [10/12/2008]

Estava aniquilado. Frente ao povo e ao fogo dos ancestrais, reconhecia a derrota. O rosto duro, crispado de marcas, se rendia.

Nesta mesma noite outro guerreiro o substituiria. Estaria apartado das novas guerras, não encararia mais seu inimigo, não seriam ele e cavalo uma coisa só. Era assim que era.

Abriu as mãos e depôs sobre a fogueira seu guizo de pescoço. Os deuses não mais o veriam no campo de batalha. Era assim que era. Sua morte como chefe estava sendo entoada no cântico cadenciado das crianças.

A labareda deixava ver apenas marcas obtusas...

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

leve e pesado



"Nós, que somos sozinhos, não podemos ficar incomunicáveis". Ouvi esta frase dia desses e tenho pensado sobre ela. Por que não? Por que não podemos ficar incomunicáveis por um determinado período, quando precisamos do silêncio? Por que precisamos estar à disposição do outro em tempo integral ou por que o outro precisa estar à nossa disposição sempre?

Ontem à noite, assistindo ao filme "Vicky Cristina Barcelona", ouvi um personagem dizer que não gosta de rótulos, gosta de viver. De certa forma, uma coisa se une à outra. Passei boa parte da vida com o sentimento de inadequação. Movia-me entre as pessoas procurando ser aceita, moldando-me. Há algum tempo isso não é mais necessário. Tenho me fortalecido. Embora as quedas ocorram com freqüência, confio em mim e sei que viver é uma viagem, nunca um ponto único e final.

O mais importante é não ser águia em galinheiro. Nada contra ser galinha, tampouco águia. O livro de Leonardo Boff traz coisas fundamentais sobre aceitar a própria natureza. Em "A Águia e a Galinha", Boff fala sobre assumir a nossa verdade. Eu acrescentaria a importância em aceitar também a nossa natureza mutante, deixar fluir a flexibilidade. "Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos" [Heráclito]

Podemos não nos encaixar no que o outro quer ou espera. Essencial é que nos vejamos com verdade, tolerância e que continuemos gostando de nós mesmos, embora o outro possa não gostar. 

Diplomacia é elemento necessário para viver em harmonia. Nem sempre o ataque precisa estar presente para que nos distanciemos do que a intuição apresenta como negativo. Basta o afastamento silencioso e civilizado daquilo que possa nos agredir.

Ao consultar o Osho sobre estas questões ontem à noite, ele me trouxe Condicionamento. A imagem da carta: embora tentando se esconder, é impossível não perceber toda a exuberância do leão em meio às ovelhas.

"Condicionamento: a menos que você abandone a sua personalidade, você não será capaz de encontrar a sua individualidade. A individualidade é dada pela existência; a personalidade é imposta pela sociedade. Personalidade é conveniência social.

A sociedade não pode tolerar a individualidade porque a individualidade não acompanhará o rebanho, como uma ovelha. A individualidade tem a natureza do leão: o leão move-se sozinho. As ovelhas estão sempre em rebanho, na esperança de que estar em grupo será aconchegante. Em meio à multidão, o indivíduo sente-se mais protegido, seguro. Se alguém atacar, na multidão há todas as possibilidades de você se salvar. Mas, e estando só?

Cada um de vocês nasceu leão, mas a sociedade está sempre condicionando. Ela lhes imprime uma personalidade, uma personalidade agradável, simpática, muito conveniente, muito obediente.

Comentário: Esta carta lembra uma antiga história zen a respeito de um leão que foi criado por ovelhas, e pensava que era uma delas, até que um velho leão o capturou e o levou até um lago, onde lhe mostrou o seu próprio reflexo. Muitos de nós somos como esse leão – a imagem que temos de nós mesmos não advém da nossa própria vivência direta, mas das opiniões dos outros. Uma 'personalidade' imposta de fora substitui a individualidade que poderia ter-se desenvolvido de dentro. Nós nos tornamos apenas mais uma ovelha no rebanho, incapazes de nos movermos livremente, e inconscientes da nossa verdadeira identidade. É hora de dar uma olhadela no seu próprio reflexo no lago, e de tomar a iniciativa de libertar-se do que quer que tenha sido imposto como condicionamento pelos outros, com o objetivo de fazer você acreditar em qualquer coisa a seu respeito. Dance, corra, mexa-se, fale uma língua inexistente – tudo o que for necessário para acordar o leão adormecido dentro de você."


***

Prefiro me sentir um grande felino, capaz de me mover sozinha.

canseira2

por Cristina Thomé [02/12/2008]

Sem os olhos, ela saiu da escuridão. A bruxa via nada e praguejava com sua língua de fogo o ser vivente. Nas mãos tinha apertados pequenos ossos. Trazia ali comprimida a raiva do mundo.

Poderosa, a mulher feiticeira faria o caldo suicida. Haveria de matar-se essa noite. Cansara-se. E, mataria consigo o ódio, o desprezo pelo humano e temporal.