sexta-feira, 31 de julho de 2009

sonho [2]

[registro do inconsciente – noite de 30 de julho de 2009]

Estou grávida. Sinto a barriga crescer e olho para ela. Ali, está acoplada uma caixa grande redonda – como aquelas de chapéu. Ela é bege, feita de papel arroz. Há uma luz dentro dela. Levanto a tampa e vejo meu bebê em formação.

Em instantes, a caixa desaparece. O meu filho – um menino negro – está em gestação do lado externo do meu corpo, ligado a mim por um fio que entra pela barriga. Vou a vários lugares com ele durante o sonho. O feto já é um bebê quase pronto. O menino tem fome e eu o amamento.

Protejo muito a criança. Tenho medo de que algo a machuque. Ainda não está pronta. Envolvo o bebê num tecido confortável, deixo-o constantemente em contato com minha pele, embalo-o carinhosamente o tempo todo. Sei que logo irá nascer. O fio se romperá. Poderei, então, descansar.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

outra vez


A vida junta coisas, folhas, frios, medos, pessoas. Ao mesmo tempo, ela também perde ou esconde tudo isso em algum canto da memória. Há momentos em que ficamos inundados por tanto que nos aconteceu. Em outros, com enormes lacunas, como se nunca tivéssemos passado por histórias que vivemos. Acontecimento sobre acontecimento, percepção sobre a outra são os responsáveis por nos reconhecermos.

Fico me perguntando qual será a nossa verdadeira natureza. Ao trafegar pela vida nos sobrecarregamos de informações que não nos dizem respeito. Somos julgados, apreciados e esse peso de opiniões alheias vai se sedimentando sobre nossos ombros. E o que não é nosso, o que absolutamente não nos diz respeito passa a fazer parte da nossa autopercepção.
Existe uma natureza interna que vai ficando abaixo do lixo.

Semana passada consultei o tarô do Osho e perguntei sobre inquietação e descontentamento, sensações presentes naquele momento. Parece que a memória havia trazido muitas experiências simultaneamente, o que provocou confusão e acabou me distanciando de mim mesma.

O tarô trouxe a carta "Integração".

Integração
O conflito está no homem. A menos que seja resolvido ali, não poderá ser resolvido em nenhum outro lugar. O desafio político está dentro de você; ele acontece entre as duas partes da mente.

Há uma ponte muito pequena. (...) Se essa ponte for fortalecida o bastante para que as duas mentes deixem de ser duas e se tornem uma só, então acontecerá a integração, a cristalização (...) O encontro do masculino e do feminino dentro de nós, o encontro do yin e do yan, o encontro do esquerdo com o direito.

Comentário: a imagem da integração é a união mística, a fusão dos opostos. Este é o momento de comunicação entre dualidades da vida, anteriormente vivenciadas. Em vez da noite opondo-se ao dia, a escuridão suprimindo a luz, as polaridades estarão trabalhando juntas para criar um todo unificado, transformando-se ininterruptamente uma na outra, cada qual contendo a semente do seu oposto no seu âmago mais profundo. A águia e o cisne são ambos seres alados e majestosos. A águia é a encarnação do poder e da solitude. O cisne é a corporificação do espaço e da pureza, flutuando e mergulhando com suavidade no elemento das emoções, totalmente satisfeito e realizado em sua perfeição e beleza. Nós somos a união da águia com o cisne: macho e fêmea, fogo e água, vida e morte. A carta da integração é o símbolo da autocriação, da vida nova e da união mística, conhecida também como alquimia. (www.osho.com)


***

Muito bacana nessa carta é o conceito da autocriação. Nada está pronto dentro de nós.
É a constante possibilidade de rever o que vai na alma, no corpo. Possibilidade de mudar de rumo, arrancar de dentro o que não serve, recriar.

terça-feira, 28 de julho de 2009

fundo

por Cristina Thomé [17/05/2000]

Caso disponha de alguns instantes, olhe fixamente para os meus olhos. Será invadido por um silêncio imaculado, uma profundez oceânica.

Nas pupilas amendoadas terá um caminho reto para tudo aquilo que imagino secreta e solitariamente. Existirão restos de navios. A palavra não pronunciada estará a seu alcance.

Mantenha seu olhar e haverá uma chave para o meu segredo, cujo conteúdo nem eu tenho explorado em toda sua profundidade. A ânsia violenta das ondas que se mostram na tormenta ao náufrago sem saída.

Continue olhando e terá o seu próprio medo recuperado, a dúvida sobre a existência em toda a sua possível exuberância. Um mundo fértil não compartilhado.

"Há um silêncio onde nenhum som se faz ouvir.
Há um silêncio onde ser algum pode existir.
Na fria sepultura das profundezas do mar."
[Thomas Houd]

Agora sim, desvie seu olhar. A tontura virá, a pressão das águas foi embora. Não encare mais ninguém, por enquanto. Descanse. Nunca se sabe o que lhe trarão os próximos olhos.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

flores

Por Cristina Thomé

Deito-me sobre o campo de flores. Consigo ver, além do céu, minha própria alma suspensa. Tento me reconhecer, não consigo.

Existem buracos nessa alma estranha. Sei que preciso de delicadezas para tratar com ela. Apenas assim ela poderá me habitar decentemente.

Ouço vozes me chamando, são fiapos de sons. As flores me retém no chão. Sussurram que, às vezes, nos perdemos. Acontece.

sábado, 25 de julho de 2009

patchwork

Sábado de frio e chuva, tempo nublado. Caminhando pelas ruas logo pela manhã, meu senso de observação está mais aguçado que de costume. As cores estão vivas depois da chuva. O verde é intensamente mais verde, o marrom e assim por diante. Parece que às árvores foi atribuída uma sobrevida, algo que não estava ali antes da água que veio do céu.

Cedo vi na tv um barco que cortava o rio Negro. O nascer do sol tingindo as águas amazônicas... A música era clássica. Na sonoridade se destacava um solo de violino. Me perdi tão profundamente naquilo e, ao caminhar agora a pouco, essa sensação me envolveu novamente.

Nessa altura já estou atravessando a praça. Bem no centro dela, existe uma bela estátua. Levanto os olhos e a imagem de Nossa Senhora me ocupa por um tempo. Acima dela um céu cortado por galhos. Maria. Me vem à mente a imagem de um sorriso branco e olhos doces. Espanto a visão que a saudade insiste em trazer de volta.

Dia desses, a memória me trouxe o apocalipse. Agora, caminhando, me lembrei de novo. Por isso, resolvi passar num sebo e comprar a bíblia. Embora o Apocalipse faça parte do novo testamento, na bíblia hoje me interessa o antigo. Me atrai a face cruel de Deus, muito clara ali. O ser apoteótico que mata sem piedade.

Nessa minha caminhada, venho costurando lembranças. Ao recolher tanto cheiro, sons, imagens, me dou conta que talvez eu tenha sido presenteada com essa percepção aguçada. Sinto que muito provavelmente isso me ajude a recolher matéria-prima para construir alguma coisa.

Com o meu recém-adquirido antigo testamento nas mãos, termino a caminhada. A vida é assim. Há momentos em que tudo faz sentido. Instantes depois, sentido algum.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

chuva

É noite. Quase pegando no sono, um clarão na fresta da janela. Levanto meio a contragosto. Pressinto formação de chuva. Não dá outra: o tempo começa a mudar.

Escancaro a janela. Um vidro separa fora e dentro. Volto pra cama, busco aconchego no cobertor e contemplo a gestação do espetáculo pela natureza. É magnífico. Raios cortam o céu. A tempestade escondida na massa escura das nuvens. O monstro grita na noite.

O princípio de chuva brava me traz à lembrança os cavaleiros do apocalipse. Belíssima essa imagem. Imagino os cavalos rompendo a escuridão, relinchando, levantando-se sobre as patas traseiras. Adormeço com o som da tempestade... Sonho com leões, muitos. Todos à minha volta.

Não sinto medo exatamente, mas o instinto de preservação me paralisa. Se tentar sair, serei morta. Em silêncio, aprecio a beleza deles. Estou num deserto e os leões continuam andando em círculos em torno de mim. Dois deles brigam entre si, disputando a carne de outro animal.

Acordo na madrugada. Cai uma chuva mansa lá fora, o que me enche de calma. Sempre tive uma ligação muito forte com a chuva, com os extremos da chuva.

terça-feira, 21 de julho de 2009

water lily

Por Cristina Thomé

A mulher nua abandona seu corpo na água. Suspensão. A pele branca delimita a noite. Claro-escuro.

Flutua serena. Os cabelos perdidos no balanço do lago. Olhos fechados absorvem o silêncio. O cheiro de terra molhada. Ausência de pensamentos. Ela finalmente descansa, sua mente, o corpo. Os músculos cedem, calmaria.

Algo bate em seu rosto. Ao abrir os olhos, a linda flor de lótus ocupa todo o campo de visão. Branca, a flor desenha um sorriso na pele alva.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

paz

"Saber desistir. Abandonar ou não abandonar – esta é muitas vezes a questão para um jogador. A arte de abandonar não é ensinada a ninguém. E está longe de ser rara a situação angustiosa em que devo decidir se há algum sentido em prosseguir jogando" [Clarice Lispector, em "Um Sopro de Vida"]

Entrar em sintonia conosco é precioso. Perceber o que se passa. Ter consciência. Existe circunstância em que independente da intensidade do sentimento é preciso deixá-lo pra trás. Algo parecido com a água de um rio que passa pelo corpo, que tira a sensação pesada que sequer tínhamos noção de carregar.

Ao ler esse trecho de Clarice imediatamente me veio à lembrança a carta do Osho que tirei na semana passada, quando pedi orientação sobre o presente. A carta foi "Transformação" e dizia que não havia o que ser feito. Nada deveria ser feito.

A resposta à minha pergunta era simplesmente desistir. A carta me falava que de imediato precisava me entregar à passividade profunda, aceitar qualquer dor, tristeza ou dificuldade e aceitar o fato consumado.

Clarice me fala coisa semelhante. E, continua: "Eu não quero apostar corrida comigo mesma". Nem eu. Incrível como a percepção foi clara. De certa maneira, o que vivo é a disputa comigo, venho resistindo. Ainda é tempo para serenar, me entregar. A desistência é redentora porque significa o meu próprio resgate.

dentro

Por Cristina Thomé

O inconsciente é carro suicida em alta velocidade, um matador profissional. Em lampejos, ele vem à tona. Sob a aparente tranquilidade existe mais, muitíssimo mais. Não me assusto. Ele cospe signos vertiginosamente.

O rato morto no corredor não me incomoda. O cheiro fétido do rato morto não me incomoda. Há um demônio sob as escamas. Existe um demolidor pronto a romper a pele branca. Queria libertá-lo, mas não posso. A sua prisão está aí dentro e terá que encontrar sozinho o caminho. Despertar.

De tolerâncias todos estamos fartos. Existe uma outra natureza sob o véu, abaixo da superfície.

seguir

Um dia mais um dia outro dia. A vida segue seu curso. Como rio, vai forçando a terra na tentativa de encontrar caminho.

sábado, 18 de julho de 2009

medusa

Por Cristina Thomé

Do emaranhado de gentilezas, palavras cuidadas, ódio, blasfêmias, se levanta a Medusa. Fustiga as palavras e as lança longe. Não quer discurso a criatura impaciente. 

Os olhos mortos da Medusa embalam a ira. Da beleza fora alijada. Afasta da fronte o confuso movimento de serpentes e fareja a adequada posição. Dirige seu olhar. As cobras eriçadas acompanham sua gargalhada de sarcasmo: mais um ser de pedra decora a sala.

Ela se afasta, lenta e entediada. Junto com as serpentes, o pensamento de que os deuses ao lhe impingirem a desgraça, lhe concederam um presente: a mortalidade. Não suportaria se arrastar para sempre.

elucubrações

Vi uma foto belíssima de duas pessoas transando. Fiquei divagando em como isso é maravilhoso. É uma delícia estar junto de alguém quando há afinidade, quando existe desejo. É saboroso se entregar, deixar o corpo seguir seu próprio ritmo. O beijo, a lascívia, enroscar o corpo no corpo da outra pessoa.

Tudo flui. Acontece. A maciez, o calor. A sintonia. Ser embalado pela perfeita conexão, o movimento. Até que o gozo venha, a satisfação. Deixar que o orgasmo espalhe sua vibração pelo corpo inteiro. Sentir depois a presença daquele corpo enrodilhado ao seu, a respiração quente.

Transar, fazer amor ou uma infinidade de sinônimos. Não interessa o nome, a sensação boa é a mesma.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

vento bom

Da janela, eu via a rua. Encantava-me ver os carros, cachorros, as nuvens que corriam ligeiras o céu. Como era bom sentir o dia!

Da cabeça ia tirando coisas, ia me limpando, esvaziando ideias, eliminando dores. Perder às vezes é bom!
 

quinta-feira, 16 de julho de 2009

vergonha

Ouvi de uma pessoa algo interessante. Mais ou menos assim: “também estou lhe contando isso porque as pessoas podem rir de você, inclusive na sua frente”. Isso me surpreendeu. Rir de mim… O que fiz de tão vergonhoso ou esdrúxulo que alguém possa rir de mim? Isso ficou ecoando internamente, ecoando… Cheguei a uma conclusão simples: as pessoas podem rir porque confiei.

O comentário foi de uma trivialidade incomum. Uma normalidade assustadora. A pessoa do comentário deve ter feito uma leitura equivocada. O que para ela é fraqueza, eu considero força. Não fiz nada além de confiar – coisa que costumo fazer com pessoas que gosto e para as quais abri espaço na minha vida. Mas, certamente alguém fez alguma coisa. E talvez venha fazendo já há bastante tempo. O que me expôs, me colocando numa posição de suposta fragilidade.

Num momento inicial isso me incomodou. Mas, ainda bem que a minha capacidade de discernimento anda grande. Daí, fui relaxando e olhando pra mim. O que vejo é bacana, é limpo, é calmo. A trajetória é suada na busca por mim mesma.

O ego arrasta a gente pro fundo, se não se presta atenção. Ele se alimenta da aprovação externa. Ao caminhar pela vida, olhando para nós próprios com amor, saberemos que muitas vezes queremos coisas que a nossa matilha não quer. E, o que nos parece ridículo, vergonhoso, pode ser uma grande oportunidade de respirar.

Continuo considerando confiança um bem precioso. E, continuarei confiando. O que mudam são as pessoas. Existem aquelas que se acostumaram a conviver acreditando que confiança é algo menor, é tolice, é fraqueza.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

amadurecer

Não sei se tive o desprendimento da escuta, mas ontem me abri para ouvir. E fiquei grata por ouvir de alguém coisas absolutamente importantes. Pude saber de coisas que de outra maneira não saberia porque convivemos em meios muito diferentes. E, não saberia por outras pessoas. Houve respeito e ouvi coisas que poderiam ser escondidas.

Bem, senti um enorme alívio porque agora posso escolher qual caminho seguir. Percebi que a outra pessoa não tem abertura para viver o que quer que seja no que se refere à afetividade, à troca. Não existe disponibilidade verdadeira.

Represento uma possibilidade de fuga. A outra pessoa está machucada, tentando entender a sua história. E, ao mesmo tempo que me quer, não me quer. A pessoa não busca a mim exatamente, mas tenta mudar de trajeto, ir em outra direção. E, ela sabe disso.

Ouvi também que sentir profundamente as coisas é não ter amadurecido. O nome usado para isso foi passionalidade. Seria mais fácil para a outra pessoa que eu fosse diferente. Mas, não sou. Não estou pedindo nenhuma garantia.

O que eu quero é qualidade no começo de alguma coisa, é leveza. Viver algo em que eu me sinta desejada. Sentir que alguém queira de verdade que eu esteja ali. E, principalmente, um lugar onde eu possa ser eu mesma, inteira, rindo do jeito que eu gosto, me entregando da maneira como é habitual pra mim.

Quero que alguém tenha espaço para me receber. Cumplicidade não é algo que acontece de um dia pra noite, mas é preciso que haja desejo pra isso. As coisas se constróem, nada está pronto. Tampouco um dia estará. Mas para que a construção comece precisa haver terreno fértil. Não quero disputar espaço com o passado (tão presente, aliás). Ou o espaço existe, ou não existe.


Não há nada de errado, no final das contas. Nada. É uma questão de sincronia. As escolhas servem para nos levar de um lugar para outro, de uma história para outra.

sábado, 11 de julho de 2009

a casa


por Cristina Thomé

Conheci uma casa que dá presentes. Oferece beija-flor pra ser salvo, brindando as pessoas com a consciência da generosidade.

A casa tem um gambá no forro, que aparece às vezes. Pelo passinho pesado sobre nossas cabeças, dá até pra sentir o seu calor, o gordinho do corpo. O bicho brinca à noite. A travessura é tirar o sono dos outros e, quem sabe, convidar para a lua, ver se o céu tem estrela.

Além de linda, a casa é confortável de não acabar mais. A madeira das paredes, as janelas, os vidros mostrando o dia lá fora, trazem paz ao coração. Essa casa inexplicavelmente faz com que nos sintamos amados, como se nos acolhesse e falasse de como somos importantes.

A casa parece que nos coloca no colo e mostra que também nós somos capazes de abrigar pessoas. Que existe a possibilidade de agregar quando queremos. Ao mesmo tempo, ela nos nivela. Atribui a mesma importância a todos que estão abaixo do seu teto. Porque pra ela o importante é somente a disposição das pessoas em se acolherem umas às outras.

Existe um segundo piso, acessível por uma escada espiralada. Dali se vislumbra o jardim. Lá em cima um espaço para o recolhimento, para a leitura, para pensar. Assim como ela mistura as pessoas, ela também separa. É uma tentativa de falar que o silêncio é igualmente necessário. De que é preciso que a gente se entenda, se encontre primeiro para ser inteiro em outros encontros.

Se uma casa pode ser nossa família, essa deve ser mãe. Do tipo de mãe boa, que passa a mão em nossa cabeça e a recosta no ombro quando precisamos tanto. Ela nos abraça em suas poltronas, em seus sofás, nas camas, nos cobre, nos aninha.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

a palavra inexistente

por Cristina Thomé

Um encontro havia sido marcado. Nele, latente a possibilidade de falar sobre dores internas, ouvir um pouco do que ia no coração da outra pessoa. Coisas difíceis, delicadas. O sentimento era grande. Disso ela sabia. Havia um dia inteiro até lá, que passou atarefado e acabou com chuva, numa reunião de trabalho com pessoas que se conheciam há muito tempo.

Sentia-se cansada. Uma canseira que não era propriamente física. Como se fosse mais funda, coisa de alma velha. Aqui nada de comparar com sabedoria. Pode ser alma velha e burra mesmo. Têm das duas coisas. A chuva lhe ajudou a chegar numa profunda calma ao encontro marcado.

Sinceramente esperava um pouco de diálogo sobre coisas que aconteceram antes e durante um comprido distanciamento. Saber da outra pessoa. O que teria feito nos últimos tempos, o que pensava, o que ia pela cabeça. Talvez nem falar quisesse tanto. Nada de conclusões, no final das contas. Porque essas coisas são sem lógica e não acontecem assim.

Logo de cara, o encontro que seria entre duas pessoas acabou em três. Nada contra a terceira pessoa, simpaticíssima aliás. Mas, estranhamente, aquilo que era importante parecia já não ser importante, ou pelo menos não tão importante assim. Um sentimento de vazio.

As duas pessoas do encontro previamente marcado eram bastante diferentes. Uma gostava de gente, o tempo todo. A outra gostava de gente, mas não em tempo integral. Cada uma delas com traços marcantes, porém em sentidos diversos. Não diria opostos. Paralelos, talvez.

Hábitos bem diferentes. Uma com acentuado gosto boêmio, a outra que via na noite uma bela oportunidade de sono. Nada aqui de considerar certos e errados, apenas diferenças. Isso vingaria? Haveria respeito para equilibrar dicotomias?

Não apostaria nessa noite. Não por acreditar ou por não acreditar, simplesmente por não saber. Algumas palavras foram ditas, algumas vontades lançadas. E assim foi, a noite e a chuva, duas pessoas dormindo juntas. Quem sabe no sono o encontro aconteceu?

A manhã veio. Café, pão, ovo quente, três pessoas falando do tempo ao redor da mesa. A chuva lá fora. As duas pessoas do encontro marcado se separam. Pode ter sido a reinvenção de um novo começo. Pode ser que nada houvesse a ser dito. Ela de fato não sabia.
 

qualquer coisa

por Cristina Thomé

Absorta pela música. Todos os sentidos entregues à voz envolvente que serpenteava pelo salão. Poucos casais na pista de dança e tudo à meia luz. Ela se perdia na fumaça do cigarro.

Era uma mulher cansada essa noite. O peso de tantas coisas se depositou em seu corpo, o choro preso na garganta. Há meses frequentava aquele lugar, ocupando a mesma mesa, apenas para ouvir aquela voz negra de mulher voluptuosa entoando um blues, sempre no mesmo tom.

Aquilo soava familiar à sua solidão. Havia errado tanto na vida, já havia perdido tanto...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

roupa


por Cristina Thomé [05/07/2009]

Tire essa roupa, não lhe combina a estampa. É bem verdade que nada do que há em seu guarda-roupa tem lhe servido ultimamente. Seu rosto mudou. Seus olhos, sua boca, sua altura, seu cheiro mudaram.

O que, em tão pouco tempo, pode ter lhe acontecido para que essa estranheza tenha se instaurado? Seu corpo não lhe serve mais, algo desajustou. Você está prenhe! É prenhez de si própria. Agora não tem jeito: vai ser outra, você mesma!

domingo, 5 de julho de 2009

maria


por Cristina Thomé [01/07/2009]

Entre tantas, conheci uma maria que se destaca do rosário de marias. Tinha um escapulário, o receio de perder pessoas, o amargo medo da solidão. Vinha lá, desde longe, com o sorriso branco estampado no rosto. Olhar zombeteiro, apertado pelo sorriso largo. Os olhos queriam timidamente brincar com a gente. Como se houvesse uma história engraçada prestes a contar.

Vez em quando, flagrava-se ensimesmada sem motivo aparente. Pensando, pensando, se fechava a maria. Era falta de estrada. Fluídica, era do tipo que não se prende, que não tem parada. Uma sede atávica por novidade. E, se descolava num sopro, pronta a descobrir outras vidas.

Entre tantas lembranças que se escondem, desse belo retrato de maria pregado na memória não quero me perder.

sábado, 4 de julho de 2009

noite


por Cristina Thomé [03/07/2009]

À espreita, o olho do bicho ruim. Era nítido o brilho no negrume. Estava lá se deslocando na sombra. Fedia aquilo. De dentro da casa podia se sentir o pesado do ar. Em algum canto a coisa nojenta media.

E, mataria quem passasse. Os da casa sabiam que essa hora não era mais a de sair. A noite exigia recolhimento. Há anos era assim. Começou repentino. Foram sumindo pessoas, sobrava sangue na palhada. Cavalo que, na teimosia, por ali fosse conduzido, estacava, refugava, não ia. Era caminho de volta, à disparada.

O tempo corria e o cheiro fétido se instalava. O estalado do mato, o brilho no escuro e a indelével presença do bicho ruim que dali não saía. Noite após noite, sem se importar com a lua.

Encomendaram novena. Ignorância desmedida. Chamar Deus pra bicho do demônio resultou em três beatos a menos na noite da procissão. Restou santo de gesso encostado ali, sem devoto pra carregar no lombo a fé que não existia.

Investidas várias pra matar o desconhecido. Semanas passaram, meses passaram. Tentativas foram minguando, rareando foi a vontade. Nada se via.

sonho [1]

[registro do inconsciente: sonho - noite de 03 para 04 de julho/ 2009]

Estou sentada no chão, com as costas na parede e o livro apoiado sobre as pernas dobradas. Ouço um barulho lá fora, continuo lendo. Na cena, apenas o livro e minhas mãos. Sinto um corte, percebo um mínimo de sangue no dedo. Continuo lendo e as mãos vão se tingindo de sangue, cada vez mais sangue nas mãos. Mancho as páginas do livro, a camiseta branca.

Continuo lendo. Alguém entra na casa. A cena se desloca para a sala ampla, com piso de mármore cinza chumbo granulado. Lateralmente uma escada em espiral e ao centro um enorme piano preto de cauda, com a tampa fechada.

A pessoa que entra é uma mulher transtornada, que discute aos gritos com um homem. Ele tenta segurá-la na sala, mas não consegue. A mulher sai para a rua ao ouvir vozes dizendo que alguém vai casar. Ela se mata lá fora. A imagem agora é de seu corpo estendido sobre o piano, coberto por um tecido fino e branco.

Lá fora, nos fundos, existe uma espécie de curral transformado em matadouro. Pessoas são mortas ali. Vísceras, sangue e muitos pedaços de veias picotadas formam uma espessa camada no chão. Saio da casa e fico parada, contemplando a mulher morta. Agora, o corpo está sobre um túmulo de concreto. Na cabeceira, como se fosse uma lápide, um espaço oco e coberto para a queima de velas. Haviam muitas delas ali, com suas chamas brilhando, a parafina derretendo.

Chega um outro corpo, minúsculo, que caberia na palma da minha mão. É uma criança numa caixinha. Nesse esquife de papelão, há pedrinhas no fundo, o corpo na posição central. À sua esquerda, uma imagem de Nossa Senhora com seu manto azul. Também plantada entre as pedrinhas, à direita, uma réplica miniaturizada de uma flor vermelha, de plástico. Ao centro, o bebê japonês morto, branco meio arroxeado. Seus braços e cabeça estão nus. Um pano branco cobre o restante do corpinho.

Seguro o pequeno pacote na mão. Um homem me orienta a levá-lo ao fundo. É ali o crematório, que consiste numa espécie de buraco lateral com cabos e mangueiras. Não há fogo, apenas um calor intenso. Fico parada em frente ao buraco, consternada, com a caixinha na mão. Um dó imenso de depositar a criança no buraco. O homem atrás de mim diz: "coloque para queimar, é melhor assim; ele vai apodrecer de qualquer forma".

Sem alternativa, resigno-me, sei que ele tem razão. Coloco no buraco o corpinho com seu esquife. Fico em pé, me perco pensando... O homem me diz que preciso levar o corpo e colocá-lo sobre o túmulo de concreto, onde está a mulher. Volto à realidade, pego o pacote. O menino está todo derretido, deformado. Uma das pernas tinha se alongado, como se fosse uma vela derretida pelo efeito do calor. A cabeça está dilatada. Seguro aquilo entre as mãos (ainda o pacote inteiro), aperto junto ao peito. Uma sensação horrível de perda, de tristeza.

O caminho de volta me obriga a passar pelo matadouro, pelo caminho estreito e afunilado de madeira, como um curral que conduz o gado à morte. Ele está imundo, repleto de restos humanos, vísceras, milhares de pedaços de veias e tripas. Não há sangue em parte alguma. Como se tivessem sido lavados por jatos e jatos e jatos de água haviam apenas pedaços amarelados no chão. Numa viscosidade consistente, esses restos formam uma camada que atinge a altura dos meus joelhos. Atravesso aquela barreira pegajosa vagarosamente, com asco descomunal.

Concluo a travessia e deposito o esquife com o corpo do menino sobre o concreto, bem próximo à cabeceira, junto às velas. A mulher morta não está mais lá.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

puta


por Cristina Thomé [02/07/2009]

Atrás do batom irregular, a puta fitava o reto do horizonte. Queria dizer algo, mas não dizia. A boca entreaberta naquele borrão apressado de aquarela. Vadia!

Suas pernas abertas eram duas pilastras sustentadas sobre saltos desafiadoramente altos. Coisa perigosa até. Um paralelepípedo, um passo mal dado e... pimba! Perna quebrada.

E quem paga licença de puta? Vai dar de pata quebrada mesmo! Sabe lá se o interesse não aumenta... Tem fetiche pra tudo. Bicha ruim, de olho ruim era aquela puta! Navalha no bolso, ligeira, não deixava nego folgar. Nem poderia.

diferenças

Li em variados momentos e fontes diferentes a força que reside na "não-comparação". Leonardo Boff fala num texto belíssimo sobre sermos templos únicos de Deus, unidades cósmicas. Cada um de nós. Há anos tenho buscado por este texto e não o reencontrei. Osho, obviamente, também discorre com sublime beleza sobre este tema.

Enfim, somos o que somos e, com a mesma força, o que nos propomos ser a partir do instante em que a consciência disso sobrevém. Não é justo que nos comparemos a ninguém. Não há justiça nisso para o outro, tampouco para nós. Pessoa alguma ganha com isso.

Nasci única. Tenho determinada forma de olhar, acompanhada de uma presença que só eu mesma tenho. Sou tímida em outras circunstâncias. Mas de uma timidez que só eu sei. Espirituosa. Cada um de nós pretende saber de seu próprio oco, da sua própria luz.

É de um reducionismo atroz o entorno, a sociedade e suas regras. Ela supõe catalogar as pessoas, atribuindo-lhes selos de viabilidade. Em que sentido esses pesos? Ganhador sob quê medida? Perdedor de quê?

quarta-feira, 1 de julho de 2009

por aí...

por Cristina Thomé [01/07/2009]

O pulmão se enche de ar novo. Com força, o homem de bengala respira na praça, inspira o ar bom da manhã, trazendo pra dentro do peito coisa limpa. Sente o vento suave atravessando seu corpo um pouco enferrujado. Sente a vida tomando a corrente sanguínea.

Pra quê girar em círculos? Pra quê? Já não há mais sentido... Já não faz diferença. Nada mais, nada mais será como antes. Encheu-se de seu apartamento mofado. Queria cores. Agora o homem de bengala quer cores. Lentamente poderá se abrir. Está pronto. Ou quase.

Anima-se com a brisa, com as folhas que lambem seu rosto e começa a caminhar. A bengala é companheira mas também um tanto inimiga na medida que retarda o passo e lhe faz sacolejar. Tudo bem. É esse o movimento. O melhor é seguir do jeito que dá. De algum jeito daria.

No rosto um sorriso discreto. Mas, dane-se, é um sorriso. Está bom assim. O homem alinha o paletó, dá um jeito na gravata para se sentir mais elegante e recomposto. Está bom. Amanhã vestirá algo mais casual e vivo. Para hoje está satisfatório. Segura firme a bengala e anda até o final do parque amanhecido, sozinho, firme.

sem sentido


"A memória é uma faca. Pode ferí-lo." (hannibal rising)

Tenho sonhado muito, além do habitual. Um emaranhado mundo interno. O esboço da manhã é um fragmento da complexa obra do sono. Ao acordar, as imagens se esvanecem, somem gradualmente.

A sensação é de tristeza. O tempo cumpre o seu papel, mas como era de se esperar o faz de maneira lenta. E a mim compete controlar sentimentos, dar jeito no que está esquisito, redirecionar a energia. O deixar ir é tarefa árdua. A consciência é clara, mas é preciso que ela impregne naturalmente o cotidiano e oculte as memórias.

Um luto esse processo. É preciso viver a perda e aceitar que nada será igual ao que já foi. Ponto! Algumas lembranças serão apagadas completamente, até que um dia algum cheiro, som ou imagem as tragam de volta casualmente. Quando voltarem estarão atenuadas e farão parte de outro tempo.

Simultaneamente vem mais um pouco de amadurecimento, de autoconsciência, de percepção. Estranheza...