segunda-feira, 31 de agosto de 2009

gelo


por Cristina Thomé

A camada espessa de gelo isola do mundo. Tudo se confunde.
Acima, o riso mudo nas faces congeladas. O isolamento é cruel. O riso congelado é cruel.

"São os riscos que se corre", diz a voz abafada em meus ouvidos submersos. Há riscos em tudo, meu bem. De que riscos você fala? Eu falo de doença. Existem pessoas doentes pisando sobre nós.

Permaneço abaixo do gelo. Com as mãos sangrando bato violentamente, quero me libertar. Cansada, me entrego. O afogamento. A água invade meus pulmões, o corpo inteiro. O que está inerte cede. Meu corpo cai, profundo. Vou para o nada, para a conhecida suspensão. Também eu preciso me curar.

domingo, 16 de agosto de 2009

não existe


Felicidade não existe. É uma ilusão que o tempo leva. Talvez exista paz. Essa eu continuo procurando. Não quero perder a fé na paz. Simplesmente porque não existiria mais nada a procurar.

Paz é a possibilidade de rir um pouco dessa coisa estranha que é viver, aceitar que a vida flui nos detalhes. Não existe nada de fora que vá causar impacto positivo se as coisas não estiverem minimamente ajeitadas dentro da gente.

Interessar-se pela vida, um dia após o outro, não é tarefa simples. Definitivamente não é. Em especial para as pessoas que olham além da superfície.

O que se vê é mais profundo. Existem momentos em que as coisas perdem o sentido. Mas a paz resgata o simples que é estar vivo. Ainda bem que os anos amaciam a carne e o espírito, no embate com a realidade.

O que fica é uma nostalgia, uma espécie de alegria triste. Rir é algo que me faz muitíssimo bem, faz bem pra minha alma. Porque nela o que vai mesmo é a sensação de que algo se perdeu. Não sei o quê, nem sei onde. Final das contas, feliz pode ser quem vive em paz, não importa se alegre ou triste.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

cantiga d'água


por Cristina Thomé

Manso, o barco corta a água. Nele vou eu. Cerrados os olhos, corpo no sacolejo do rio. Todo sonho, vento leva. Todo desejo, água apaga.

O rebojo risca de riso minha cara. Rasante de arara tinge o coração. Vou pra festa na vila. Pra quê mais festa do que a que tenho aqui? Morno de tarde boa de barco no rio que leva meu pensamento.

monólogo


por Cristina Thomé


Límpida, a voz cruza o corredor, desce escadas, encontra a rua. O requinte das lembranças o habita novamente. O frio corrói seus ossos, não tem como remediar. A voz, ao menos, aquece. A força da sonoridade ressuscita imagens.

Não se incomoda. Tanto faz os restos de roupa, a parede fria que lhe sustenta as costas. O que importa é enebriar-se na voz, lembrar-se tão nitidamente daquele rosto, a lembrança concreta que poderia tocar.

Suas mãos atingem o vazio ao quase encostarem no passado. Nem sabe a qual vida pertence o rosto. Sente a dor funda. Todo o frio, toda a fome jamais machucarão como a ausência, a falta que o rosto lhe faz.

O canto lírico reacende o sentido. Parece que algum valor lhe resgata. Apenas sentimento, monólogo silencioso que a alma aceita tão bem.

sopro


por Cristina Thomé

O touro respira o bafo quente em meu pescoço. Sinto a fúria no tremor da carne, pontiagudo do chifre varando a pele. É festa de rua. Ritual de sangue.

O animal me toma pra si. Oferenda desde a concepção, nasci de seu sopro. A ele, retorno.

passagem


por Cristina Thomé

Figura transformada em contorno. A imagem some como areia em mão aberta sugada pelo vento. Como fiapo de sonho na manhã. Rosto insano da louca nua que dança em meus olhos. A que falseia. A inconsciência no escuro.

Deitada em cama de palha sobre a fogueira, no meio do nada, queima em rito remoto de morte. Cinza que a terra esconde. A terra, o tempo, a vontade comeram a sua passagem.

Sobrar o quê? Nada pra sobrar. Na medida, sua passagem.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

distante


por Cristina Thomé

Era puro olhar a menina de pensamento longe. Encostada na porta de madeira via uma imensidão de terra à sua frente. Tudo parecia absurdamente grande. Seus olhos se perdiam.

Se perdia também no que imaginava vir a ser. O que talvez um dia fosse. A timidez era gigantesca. Nem imaginava como chegaria no lugar que precisava chegar. Nem sabia direito onde precisava chegar. Sabia que era longe de tudo o que estava a seu redor agora.

Seus olhos eram doces. De uma doçura que chegava a agredir, porque o mundo lá fora a gente sabe que não seria muito bom com ela. Ela não sabia. Se deixava levar pela vontade de ganhar estrada e pelo medo de botar o pé descalço naquela terra tão conhecida sua. Pra nunca mais, se começasse a andar. No fundo, aquele doce todo talvez fosse capaz de driblar o que de mal ia cruzar o seu caminho.

Por mais que o rude grudasse na barra de sua saia e se arrastasse com ela, sinto mesmo que ela daria conta de se livrar desse peso. Ela tinha tanta coisa boa naquela alma. Não é possível que fosse diferente. Ao olhar para aqueles olhos límpidos a gente se perdia.

É certo que ela daria conta de chegar onde a intuição mandava ir. Ah! Daria conta sim!