segunda-feira, 14 de maio de 2012

travessia




Lembro de um ano novo, ainda criança, em que eu abri a porta que dava para a frente da casa. Olhando o portão de ferro e a chuva que caía, escutava o silêncio. Ninguém na rua, todos em casa dormiam. Eu ali, em pé, com a mão na maçaneta, a porta entreaberta, o portão de ferro, a chuva e a minha tristeza gigantesca.

Jesus! Como me sentia arremessada naquele espaço, no corpo que eu vestia. Um completo desajustamento, inadequação total, um extra-terrestre em terreno desconhecido. Uma completa falta de laços com a família que ali dentro dormia, com as pessoas ao meu redor.

O sentimento de culpa era enorme. Mas culpada de quê? Uma melancolia tremenda. Sentia que se pudesse estar a milhões de anos-luz daquele lugar, já teria ido há tempos. Queria fugir daquela vida, sair daquele corpo, voar.

Falar era um esforço absurdo, me relacionar era pesado demais. Naquela noite, como em todos os anos anteriores a ela, sentia saudade de um lugar que sequer sabia. Uma saudade perdida no tempo, um vislumbre de lugar ao qual talvez eu pertencesse.

Os anos foram passando. Fui driblando a vida como dava, como dá. É difícil me relacionar com o outro. Quero silêncio, calma. A relação com o outro continua me trazendo peso, desconforto. Pelo menos a minha cabeça fala menos do que falava no passado. O som de milhares de vozes se reduziu a dúzias, que procuro coordenar e consigo, hoje, colocá-las em fila com senha, para que falem de maneira ordenada.

Quando lido com vários estímulos externos, basicamente pessoais, me sinto exausta. Os profissionais são administráveis e relativamente simples. No trabalho consigo resolver os desafios com objetividade e extrema eficácia. Pessoas são problemas. Eu e elas, cobranças, presunção de que me conhecem, de que as conheço, muito mais problemas.

O desafio é lidar com isso da melhor maneira possível. Ouvidos bem grandes para me ouvir adequadamente, olhos bem grandes para ver na escuridão e um amor bem gigante para me aceitar e dar passos conscientes nesta casa que não era minha, mas se tornou. Acredito que a meditação e o profundo respeito por mim dêem conta da travessia, além de boa dose de resignação e resiliência.