Lembro
de um ano novo, ainda criança, em que eu abri a porta que dava para a frente da
casa. Olhando o portão de ferro e a chuva que caía, escutava o silêncio.
Ninguém na rua, todos em casa dormiam. Eu ali, em pé, com a mão na maçaneta, a
porta entreaberta, o portão de ferro, a chuva e a minha tristeza gigantesca.
Jesus!
Como me sentia arremessada naquele espaço, no corpo que eu vestia. Um completo
desajustamento, inadequação total, um extra-terrestre em terreno desconhecido. Uma
completa falta de laços com a família que ali dentro dormia, com as pessoas ao
meu redor.
O
sentimento de culpa era enorme. Mas culpada de quê? Uma melancolia tremenda. Sentia que se pudesse estar a milhões de anos-luz daquele lugar, já teria ido
há tempos. Queria fugir daquela vida, sair daquele corpo, voar.
Falar
era um esforço absurdo, me relacionar era pesado demais. Naquela noite, como em
todos os anos anteriores a ela, sentia saudade de um lugar que sequer sabia.
Uma saudade perdida no tempo, um vislumbre de lugar ao qual talvez eu
pertencesse.
Os
anos foram passando. Fui driblando a vida como dava,
como dá. É difícil me relacionar com o outro. Quero silêncio, calma. A relação com o outro continua me trazendo peso, desconforto. Pelo menos a minha cabeça fala menos do que falava no passado. O som de milhares de vozes se
reduziu a dúzias, que procuro coordenar e consigo, hoje, colocá-las em fila com
senha, para que falem de maneira ordenada.
Quando
lido com vários estímulos externos, basicamente pessoais, me sinto exausta. Os
profissionais são administráveis e relativamente simples. No trabalho consigo
resolver os desafios com objetividade e extrema eficácia. Pessoas são
problemas. Eu e elas, cobranças, presunção de
que me conhecem, de que as conheço, muito mais problemas.
O
desafio é lidar com isso da melhor maneira possível. Ouvidos bem grandes para
me ouvir adequadamente, olhos bem grandes para ver na escuridão e um amor bem
gigante para me aceitar e dar passos conscientes nesta casa que não era minha,
mas se tornou. Acredito que a meditação e o profundo respeito por mim dêem
conta da travessia, além de boa dose de resignação e resiliência.