segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

posse


Domingo à noite. Ao fundo, a voz da egípcia Um Kalthum – a cantora mais cultuada da música árabe. São músicas que se estendem às vezes por horas, onde os instrumentos ficam sozinhos durante longos minutos, até que ela apareça e suma novamente. Enquanto isso, khalil faz contorcionismos sobre o caderno: ela não entende porque perco meu tempo com a caneta, se poderia estar ocupada em lhe fazer carinho.

Ela não desiste. Seu corpinho ocupa o caderno todo e eu a acaricio. Ela fecha seus olhos felinos pré-adolescentes e curte, extasiada. Khalil é muito interessante, a apelidei de gata voadora. A cada dia, ela descobre uma nova possibilidade de subir mais um pouco. E, ultimamente, tenho sido vista de cima: do box, do armário, da geladeira...

Fico fascinada com a soberania dos felinos. Sejam eles pequenos ou grandes, agressivos ou não. Eles podem até não saber de nada, mas me passam a impressão de saber exatamente o que querem.

Consultei o tarô do Osho agora a pouco. Ele me trouxe a carta "O Compartilhar": "a Rainha do Fogo é tão rica, tão régia, que pode permitir-se dar presentes. Nem lhe ocorre a idéia de fazer um inventário do que tem, ou de deixar alguma coisa de lado para o futuro. Ela distribui os seus tesouros sem restrições, recebendo a todos sem distinção para que participem da abundância, da fertilidade e da luz que a envolve.

Quando você tira esta carta, isso sugere que você também se encontra em uma situação que lhe dá a oportunidade de compartilhar o seu amor, a sua alegria e o seu riso. Ao compartilhá-los, você descobrirá que se sente ainda mais pleno. Não há necessidade de ir a parte alguma nem de fazer nenhum esforço extraordinário. Você descobre que é capaz de desfrutar a sensualidade sem possessividade ou apego, e que pode dar origem a uma criança ou a um novo projeto, com a mesma criatividade plena. Tudo à sua volta parece estar se 'integrando'. Desfrute isso, firme-se nisso, e permita que a abundância que está em você e ao seu redor transborde."

Nada poderia ser mais oportuno. Não existe nada que nos pertença verdadeiramente. A posse é falsa, um sentimento que entorpece. Tornar presente que nada ou ninguém nos possui e que não possuímos, transforma a vida em algo mais leve.

A posse pode ser apenas confortável ou perversa. Ambas as formas desnecessárias. Ela pode até configurar-se por um período, mas a sensação é volátil. E, mesmo tendo a percepção de que possuímos tantas coisas ou pessoas, a vida nos mostra que podemos, de repente, não ter nada do que supúnhamos ter.

A posse não nos garante nada. Nada nos garante nada. Porém, compartilhar o que existe dentro de nós é uma dádiva. Receber o que os outros têm a dar, também.

Quando falamos em pessoas, a posse se transforma em algo mais complicado ainda. Supor que possamos subjugar, ou "ter à mão" alguém para quando nos for necessário, é bem pequeno. E, encarar que somos essencialmente solitários é a valiosa consciência se apresentando.

A solidão a que me refiro não traz nada de negativo. Acredito que esta percepção nos faz valorizar as pessoas e a nós mesmos. Cada qual templo único a ser respeitado e tratado com cuidado. Isso nos leva a compartilhar e a receber, sem querer simbiose. É uma questão de limites, de permitir a aproximação e o afastamento.

2 comentários:

joshua disse...

Bravo. Muito bem.

PALAVROSSAVRVS REX

Sil disse...

Confissão:
Seu primeiro texto q me causou enorme admiração, foi uma redação no colégio sobre o carnaval. Enqto todos, na nossa imaturidade, escrevemos o óbvio sobre o assunto, vc descreveu um cenário magnífico q me fez pensar: "Algum dia vou ler um livro escrito por ela"...e me senti a pessoa mais orgulhosa do mundo por ter uma amiga tão talentosa. E aquela redação nunca mais saiu da minha lembrança. O conteúdo, claro, o tempo já levou, mas a sensação q o texto me causou sempre volta qdo penso em vc e mais ainda qdo visito esse seu espaço aqui, q sempre me proporciona as melhores reflexões.
Vc é show!!
Bjocas