quinta-feira, 18 de junho de 2009

batimento

Ontem foi dia de hospital. Fomos pra lá no final da tarde. Problemas da melhor amiga: taquicardia, velha conhecida. Como o batimento não baixava depois de 3 horas de manobras próprias, ela resolveu não esperar mais.

Horário de chegada: 17 horas. Preenchimento de ficha, atestado de responsabilidade sobre a paciente (óbvio que eu não sou da família: melhor amiga  japonesa e eu com essa cara de italiana), CPF, RG, telefone... Momento de esperar na recepção. Ficamos ali tricotando a vida, os últimos acontecimentos, o jogo bacana do iPhone dela, enquanto o batimento cardíaco acelerado não dava trégua. Ainda houve tempo pra rir um pouco das desgraças enquanto o atendimento não vinha.

A enfermeira chama. Lá vamos nós para uma viagem que duraria até a manhã do dia seguinte... Entra a moça com o aparelho de eletrocardiograma. Ela faz o exame de praxe, coloca aquela meleca pegajosa nos eletrodos e gruda no corpo da melhor amiga. Eletrocardiograma pronto, ficamos ali na salinha improvisada, aguardando outra vez. Nunca entendi como boa parte das enfermeiras, de jaleco e roupas brancas, consegue ficar elegante em pleno "vuco" de hospital. A mocinha simpática, de cabelos longos presos na trança e brincos compridos, pede pra esperar. A melhor amiga já estava com aquele camisolão ridículo, azulzinho.

A porta abre e um enfermeiro, acompanhado de nosso olhar preocupado, empurra o equipamento que monitora o batimento cardíaco. Ultramoderno, o aparelho tem o desfibrilador acoplado. Convenhamos que ter um desfibrilador como imagem inicial não é lá muito estimulante. Ou estimulante demais pra começo de atendimento! Novamente meleca nos eletrodos e acopla tudo. O aparelho tem um alarme: de 161 batimentos por minuto pra cima o "trem" dispara. Bem, daí somos acompanhadas pelo silêncio e pelo alarme, pelo silêncio e pelo alarme... Certo é que foi mais alarme que silêncio.

Chega o médico: você já agachou? Sabe a manobra da respiração? Já tentou? – pergunta ele.

Melhor amiga: doutor, sou especialista em manobras, nada feito.

Bem, diz o doutor, vamos aplicar adenosina para reverter a taquicardia. Não se preocupe, temos 3 tentativas, podemos aplicar três injeções da droga sem risco.

Nossa! Respiramos aliviadas. Eu já estava com o sapatinho, a bolsa e o sobretudo da melhor amiga nas mãos... Olhei pra ela que estava me olhando e sentimos "firmeza"... O soro já estava conectado na veia boa. O enfermeiro se aproxima, o médico se posiciona, injeta a adenosina direto no escalpe. Na sequência, injeção de soro pra impulsionar a chegada da droga ao coração. A melhor amiga sente o calorão e a pressão do remédio correndo pela veia. O aparelho mostra que os batimentos baixam... Pra subir de uma vez só logo em seguida! Primeira tentativa se foi. Sem problema: ainda restam duas.

O médico sai. Volta. Hummmm.... Persistente a taquicardia, hã?! Vamos para a segunda. 

Eu e melhor amiga nos olhamos novamente... Segunda! Tudo de novo: adenosina na veia, injeção de soro pra empurrar, calorão! Taquicardia baixa geral: vai pra 140 bpm. Pra subir de uma vez: 190 bpm... Nadinha! O médico troca um olhar com o enfermeiro, brinca com a melhor amiga: não se preocupe, é sempre assim, na última ela reverte.

O cenário já mudou um pouco: agora é a última. Tenho certeza que a melhor amiga está pensando: "o médico disse que a margem de segurança eram 3 injeções... "

Lá vem a 3ª. Tudo de novo: adenosina, soro, direto pro coração, calorão, baixa e.... Sobe! Bem, que catástrofe acontecerá agora? Ele nos olha calmamente: não se preocupe, agora aplicaremos ancoron vagarosamente na veia durante meia hora e certamente a taquicardia reverte. Bem, pra quem foi de fórmula 1, andar um pouco de carroça serve pra acalmar e curtir a paisagem...

Melhor amiga deitadinha. Lá vem a chefe da enfermaria: gente, vamos ter que desocupar a sala, isso aqui tá cheio hoje... Vamos levar pra UTI: como tem que monitorar, lá tem uma vaga.

Operação locomoção: a chefe Marli e o enfermeiro – um rapaz que masca chiclete compulsivamente – empurram a cama, que desliza com as rodinhas. A melhor amiga segurando nas bordas, com olhar um pouco surpreso. Eu, atrás, com o guarda-roupa da melhor amiga pendurado no ombro, empurrando a mesinha do monitor cardíaco.

Instalada na ala de observação da UTI, me posiciono numa poltrona ao lado da cama e ficamos ali, conversando baixinho, reconhecendo o território e nossos parceiros de percurso. Encostado na cama o monitor cardíaco – agora com o alarme desligado... 170...169...168...167...161...160...165...167...166....170... E o ancoron pinga lentamente...

Nessa ala, separados por biombos, temos: - "puxadinho 1": dona matilde, uma senhora gorda com um problema de obstrução na veia, que espera um cateterismo; - "puxadinho 2": anônima: uma mulher ainda nova, recém-saída da cirurgia para redução de estômago, que pouco se manifesta (ainda está "grogue"); - "puxadinho 3": era a gente; "puxadinho 4": seo valdomiro, sei lá o que ele tinha, mas o oxigênio ficava ligado direto, tosse terrível, com o pé muito inchado, pele vermelha, vermelha, parecia um espanhol enraivecido; - "puxadinho 5": rodrigo: ah! Esse aqui mereceria um tratado próprio; "puxadinho 6": um senhor inconformado com a comida que chegou muito antes dele acordar e esfriou.

1/2 hora se passou... Monitor cardíaco... 160...159...158...157...159...161... Rodrigo, o ocupante do "puxadinho 5": "arnaldo, arnaldo, quero deitar de lado". Ele chamava o enfermeiro. Porém, ficamos sabendo que não havia nenhum arnaldo, tampouco anderson. Mas, mesmo sabendo que os enfermeiros da noite tinham outros nomes, ele insistia em batizar os meninos por ele mesmo. E não havia quem o demovesse desse propósito. Bem, a essa altura, acho que ninguém se importava mais.

O senhor da comida fria, ao lado do rodrigo, visivelmente irritado com a suposta falta de atenção à suas reclamações, sai com essa: "o arnaldo fugiu do hospital com a enfermeira da noite...". Depois rindo sozinho, se calou, como se já tivesse destilado a sua vingança. A chefe de enfermagem responde: "comigo não foi, que estou aqui".

Nós duas, ali, empenhadas em acompanhar os batimentos... Desciam e subiam. Daí baixavam lentamente, lentamente. Sr. Valdomiro agora, no "puxadinho" em frente ao da melhor amiga, comia torradas ruidosamente e sorvia o chá de erva-doce com um estalar de língua. Um barulho um pouco irritante. Mas, quando ele tossia a cena ficava pior. A impressão é que ele engasgaria e não voltaria mais. Coisa que a melhor amiga presenciou à noite, sozinha, na UTI... Mas foi o silêncio – ao invés da tosse – que apavorou: ele não respondia aos chamados, mergulhado num profundo sono. Ao amanhecer, também ele tinha seu próprio monitor cardíaco, além da parafernália de tubos do oxigênio e dos escalpes de soro e medicação.

Dona Matilde recebia visita da família: contava animada que a perna já não doía tanto, que tinha sido corajosa durante o dia no exame que precisou fazer e que estava com muito medo do catéter, que seria inserido pela manhã. Passava ânimo pra família na sua voz rouca... Quando o filho foi embora, um vazio. Dona Matilde ficava dizendo baixinho: "meu deus, me ajude, meu deus, me ajude". A anônima do "puxadinho 2", a da redução de estômago, começava a ter ânsia de vômito, acompanhada da filha e do marido.

Conseguíamos sentir o sufoco. Havia apenas um biombo separando-nos. Nesse momento, o batimento cardíaco da melhor amiga subiu um pouco porque a sensação de fato foi muito ruim. Mas a mulher estava numa tal felicidade, porque certamente iria emagrecer, que contornou o mal-estar rapidinho, logo se refez e a família foi embora. Rodrigo continuava chamando o arnaldo, o anderson, e com o controle remoto da cama não parava de acioná-la: a cama subia, a cama descia, os pés subiam e desciam. E o barulhinho mecânico a cada movimento. Não demorou muito: "anderson, anderson, vem me trocar, estou molhado". Lá vem o enfermeiro Rubens: constata que Rodrigo está completamente molhado e começa a operação "troca tudo": roupa de cama, camisola, fronha, travesseiro. Não conseguimos entender como o Rodrigo se molhou tanto: acho que a movimentação louca da cama acabou espalhando xixi para todos os lados.

Enquanto isso, um problema: o senhor da comida fria acaba de receber o chá da noite. Inconformado chama a chefe de enfermagem. Ela se posiciona ao lado e ouve atentamente: isso não está certo, olha o problema que vocês me criaram – reclama ele; demoraram pra avisar que a comida estava aqui, comi fria e muito tarde, agora na sequência acabo de receber o lanche da noite; como vou comer se acabei de jantar?

A chefe pacientemente explica que ele deveria ter pedido para esquentar. Mas que pode deixar o chá da noite ao seu lado porque a garrafa é térmica e ele poderá se servir quando sentir fome...

Batimento cardíaco da melhor amiga... 140... 139... 138... 137... 139... 138... 137  São 10 e meia da noite. A chefe da enfermagem passa: você vai ficar, não tem jeito, a droga precisa impregnar... Insisto que gostaria de passar a noite. Ela me diz que não é possível e não adiantará nada. Fico ainda um pouco ali. Os enfermeiros da noite passam: lexotan para o senhor da comida fria, lexotan para rodrigo – que não pára de chamar o arnaldo, querendo ficar de lado, querendo saber da dieta que entra pelo nariz, querendo seu controle remoto de volta –, lexotan para o senhor valdomiro da falta de ar, lexotan para a anônima, para a dona matilde. Pouco tempo depois, silêncio... A melhor amiga vai tomar o seu bem mais tarde... Reversão da taquicardia apenas de madrugada, às 5 horas.

Vou pra casa e retorno de manhã. Taquicardia revertida, procedimentos padrão, chá quente na cama com direito a dois pãezinhos com geléia. Melhor amiga cansada tem alta e pode voltar pra casa e para um banho quente. Bpm: 71... 72... 70... 72...

Um comentário:

Anônimo disse...

Krika,

Estou roxo. Isso dá uma novela. (Especialmente depois de ter passado o susto).

Faltou você dizer que o enfermeiro trouxe lexotan para você também e que você o tomou em casa, com um bom cálice de vinho tinto, lendo poemas existencialistas na frente da lareira...

Bjos.

Gui.